Como numa cápsula enviada para o desconhecido, ele se viu em um ônibus, olhando para trás e se perguntando se veria aqueles rostos novamente. Não, nunca mais. Ficou sabendo tempos depois que a favela, logo após sua saída, fora desmontada por conta de um programa habitacional da cidade. Adotado por uma família de classe média, passou a viver em uma casa não tão grande, mas sensivelmente maior que a sua original que, agora, parecia estar em outro planeta, de tão distante.
Por um tempo, sentiu-se deslocado. Apesar do dedicado e insuspeito amor dos novos pais, por vezes se isolava, escondendo segredos e saudades. Seu mundinho próprio, sua solidão, era clara como cristal. E ele gostava dela, pois ali encontrava memórias de um passado que pouco viveu. Mas logo descobriu que, de certa forma, o que tinha herdado não era apenas uma nova casa, ou uma nova oportunidade. Era um novo caminho, que oferecia algo que ele jamais imaginara: uma chance de compreender o que estava além daquilo que seus olhos de menino haviam alcançado até então. Sua visão de mundo aumentou, ficou mais rápido ao discernir, e sua audição parecia mais aguçada – ouvia e prestava atenção em tudo. Ou seja, ele se tornava mais forte a cada sol, a cada dia.
A lembrança dos antigos pais, porém, nunca o abandonou. Mas ele não permitiria que os fragmentos desta outra vida o enfraquecessem. Na faculdade, conheceu amigos, namoradas e, claro, alguns inimigos – poucos escapam do bullying. Lá percebeu que tinha um dom: a palavra. Suas histórias, observações e questionamentos eram como um sopro forte de motivação e clarividência. Formou-se, enfim. E voou. Repórter vigoroso, estava onde a notícia acontecia. Como jornalista, escrevia sobre injustiçados e opressores, tornando-se algoz de vilões que surgiam de todos os cantos e dimensões. Pelas suas origens, juntou-se a um grupo que defendia pessoas e comunidades carentes, plantadas na periferia da metrópole. E percebeu que ao enfrentar tantas forças antagônicas, que pareciam drenar sua energia, a missão de reencontrar os pais tornou-se etérea e secundária: o mundo precisava dele, de sua atenção. E ele atendeu de cara limpa, sem disfarces, na força e no poder de sua escrita. Nas telas, jornais e revistas, tornou-se um símbolo. Descobriu, porém, que seria difícil vencer seu maior temor: não era possível estar em todos os lugares ao mesmo tempo. E, diante de batalhas e guerras, ganhas e perdidas, o mundo seguiu seu curso e sobreviveu. Assim como ele, e seu legado.
Hoje mais velho, sentado num banco no quintal de sua fortaleza, a antiga casa dos pais adotivos, ele observa a criança que corre de modo desengonçado, pés pequenos e descalços na grama. E relembra todo o espaço percorrido até se encontrar ali, naquela terra. Dois mundos, quatro pais, muitos amigos – alguns super – e a certeza: foi e tem sido uma grande aventura, sem dúvida. Levantou-se, sorrindo, e foi ao encontro à companheira. Ela, com seu filho nos braços, apontava para o céu mostrando ao pequeno um pássaro azul e vermelho que passava, voando bem alto. Ou seria um avião?