4 Marcelo Leal

Fio da meada

Cá estou, marcada pelo tempo, solitária nesse cômodo onde consigo ouvir o vento sacudindo os galhos do velho cinamomo. Antes, era eu tão necessária; agora, peça dispensável e ultrapassada. Ninguém me escuta mais. Nem serventia tenho, assim como acontece com tanta gente.

Noutros tempos, havia risadas, rodas de mate, bolinho frito, enquanto Elza costurava.  Com tecidos inventava saias, blusas, calças. Era costureira de mão cheia, como diziam. As vizinhas reuniam-se nas tardes de chuva para a costura, o bordado, o tricô, o desabafo, os causos. Remendavam a roupa das crianças e dos maridos, os rasgos na alma. Alinhavavam esperanças em colheitas melhores. Bordavam dias coloridos, dourados, ensoladas, apesar de tantas dificuldades.

Novas encomendas de costuras eram sempre bem-vindas. Elza e eu, inseparáveis. Especialmente à noite e nas madrugadas. Durante o dia, tinha os afazeres da casa, da roça. Se fazia frio, o fogão à lenha aquecia as mãos que cortavam o poliester, a xita, a malha, conforme o molde copiado de uma revista antiga. Na Colônia, as revistas já chegavam desatualizadas. Nós duas costuramos o traje rosa da filha, para a Primeira Comunhão. Babados e mangas bufantes de broderi. Uns trocados estavam escondidos para comprar um tecido melhor para o vestido. A menina ficou uma graça, lembro até hoje. No domingo, a família quase perfeita celebrou na capela da comunidade.  Não teve festa, como era costume. Ele achava bobagem essas comemorações. Ele dava as ordens, o norte, o sustento, os gritos. Aí de quem ousasse contrariá-lo.

Dia após dia, Elza, entre agulhas e fios, se  concentrava para espantar as grosserias Dele. Pedalava, enquanto eu percorria o traçado no tecido. Era proibido sair da linha.  Só a Matilde desafiou a tradição e fugiu com o Arnaldo, ainda recordo as mulheres comentando. E enquanto trocavam a linha na agulha, comentavam sobre as manchas roxas no braço da Antônia – marcas do casamento. Cada uma com seus perengues, cortes, apertos, paredes, janelas nem sempre abertas.

Com Elza  não era diferente. Sei que estou perdendo o fio da meada, os fios da memória, mas lembro bem quando a menina  virou moça e se foi. Não namorou, nem casou como era costume. Só foi embora. Não queria aquela vida pra ela. Depois disso, Elza parecia mais cansada, olheiras escuras, mais trêmula, assustada.  De vez em quando, eu ouvia portas batendo, barulho de luta unilateral. A costureira chorando baixinho. As comadres apareciam cada vez menos. Até que não se ouviu mais os passos de Elza no assoalho. Ainda hoje não sei o que aconteceu. Fiquei eu, encostada nesse canto, linha preta na agulha. Máquina velha, em desuso, aguardando o destino.



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