A despeito das recomendações de bordo, levanto furtivamente a cortina da janelinha do avião e me deparo com um algodoal em flor debaixo de nós.
Lá fora o sol explode. A claridade toma conta do ambiente e a imediata murmuração restabelece a penumbra.
O ruído contínuo das turbinas me remete à travessia do Monte do Perdão, na cordilheira dos moinhos, no final da última década do século passado. Recém-instalados, os aerogeradores fizeram a trilha sonora do acidentado caminho, naquele trecho de Navarra. Era praticamente o começo da jornada. A primeira Comunidade Autônoma das quatro que se atravessam para chegar a Compostela.
Durante um bom tempo, o moto contínuo do som daquelas pás gigantes penetrou meus ouvidos, e levou-me a recordar Cervantes. Na ocasião pensei: Nós, peregrinos de Santiago, somos os Quixotes de hoje nesta aventura vigiada por enormes torres eólicas, testemunhas da nossa fragilidade e impotência. Dois dias antes, então no alto dos Pireneus, nuvens de algodão estendiam-se sob meus pés, fazendo redobrar os cuidados para me manter na senda.
Retorno da divagação. Aqui dentro, nesta imensa aeronave que desafia o poder da gravidade, a quarenta mil pés de altitude, com mais de quatrocentos passageiros, também me dou conta da nossa vulnerabilidade.
Minha procura por outros pontos comuns entre aquela experiência e esta viagem é subitamente interrompida pela voz do Comissário, anunciando a iminência do pouso.