5 Iara Tonidandel

Beija-palavras

Escrever é segurar uma coisa que está perdida. Interessante pensar sobre essa afirmação da personagem Katherine (Laura Dern) no filme drama romântico americano “Amores Solitários”, escrito e dirigido por Susannah Grant. A película estreou na sexta-feira, dia onze de outubro na Netflix e envolve o romance água-com-açucar entre Katherine, escritora com bloqueio criativo, que vai para um retiro de escritores no Marrocos, onde conhece Owen ( Liam Hemsworth), com quem inicia relacionamento amigo-amoroso.

Mas, não é sobre o filme que quero falar – embora fica a dica para quem quer relaxar – e sim, sobre a escrita. Escrever é segurar uma coisa que está perdida: alguém que se foi, as brincadeiras de infância, rostos, risos, viagens, coisas simples, decisões complexas, a rosa seca esquecida dentro do livro de poesia.

É se agarrar com ânsia e teimosia ao pôr do sol no mar,  à menininha construindo castelos de areia e promessas; hoje adulta e decidida. É resgatar a hereditariedade e luzes sobre a maternagem.

Escrever dá som ao vento, que sacode a cortina da sala, as roupas no varal, as folhas no pátio, durante a sesta de domingo. Até a casa ressona, preguiçosa. E reproduz o canto do pássaro na pitangueira, adornada com pérolas doces e avermelhadas.

A escrita é cura, catarse.  É sublinhar a saudade e o último telefonema. Quando quem esperamos não vem. E não virá.  E só o tempo dirá sobre outro encontro, num aeroporto, numa esquina. Ou nunca mais. As palavras não ditas engolidas, gole a gole, por temer o risco. Poderia ter sido um grande amor, porém… Tudo tem um porém. E a escrita serve para explicar, justificar ou dar um basta aos poréns da existência.

É bússola, lastro, sustentação. Terapia. Permite descartar os desgostos, como embalagem de papel amassado.

Escrever é segurar uma coisa que está perdida. Os amores de ontem e de hoje. Aquele que é para sempre. Embora o sempre seja tão complicado, instável, impermanente. É resgatar valores, humanizar o homem, lembrar as pessoas sobre sua finitude e transitoriedade; dar voz aos excluídos, esperança aos desamparados.

Escrever não é escolher substantivos, verbos, predicados, adjetivos decorados com glacê. É sal, pimenta, páprica picante.  É brasa. É faca afiada. É sabor e transformação. E é leveza, misticismo, conexão espiritual, otimismo, renovação.

A escrita é mais do que segurar coisas perdidas. É sobre mim, é sobre nós, é sobre a coletividade que espera dias melhores, Carnaval na rua, sentimentos sem censura e sem frescura. Afinal, sentir é a essência humana. Pobre de quem desvia-se dessa sina! Escrever é sobre vida. É a dança do colibri que se aproxima da flor, com graça e leveza, e retira dela néctar e sustento.  É sobre a fragilidade, a beleza, liberdade e  a impermanência do pequeno beija-flor, beija-palavras.

Estou para a escrita, assim como a flor está para o colibri.



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