Da varanda, o avô observa a alegre balbúrdia da criançada. Correm, desatinados, contaminados pelo verde e o oxigênio sem resquício de poluição. Empoleiram-se nas árvores feito macacos, empanturram-se de goiabas, bichadas ou não, e de caquis de polpa muito doce. As mães se aborrecem com as roupas manchadas, os joelhos ralados, os pés cortados, os cabelos desgrenhados. As crianças não ligam, é inebriante a liberdade que experimentam, longe das telas e dos barulhos da cidade. E não pense que na casa do vovô não tem WiFi. Tem, sim, com acesso liberado. A senha é vovôfelpudo_1960. Foi Artur, o neto mais velho, que a criou. É assim que ele o chama até hoje, Vovô Felpudo, por causa da barba espessa e macia. Coisas de guri. Coisas de avô.
No meio da sua numerosa e risonha descendência, Bernardo, o menorzinho, caça joaninhas e formigas. De olho no pequeno, o avô pensa no passar das horas e dos anos, nas tantas vezes em que atravessou a porteira, em direção à ampla residência de janelas brancas, deixando as preocupações do trabalho e as angústias de existir, do lado de fora. Nesse território de lucidez e ternura, comida simples, chimarrão ao anoitecer, descobertas e aprendizados eclodem como sementes, multiplicam-se, levados pelo vento e pelos passarinhos. Na hora de retomar a rotina, a cancela fechava atrás de si, a obrigação cotidiana mordendo seus calcanhares sem piedade. Até o dia em que ele entrou pela porta da morada amarela para não mais voltar. Vive sossegado, as varandas da casa e da alma abertas, enchendo-se a cada geração que chega.
Descalço, Bernardo experimenta a grama com certo receio, colocando-se nas pontas dos pés. Não sabe bem se deve pedir socorro à mãe ou se vale a pena continuar por ali, perseguindo insetos. A cabecinha dourada vira de um lado ao outro, indecisa, até que uma borboleta cor de laranja pousa na sua mão, distraindo-o de tamanha dúvida. Imóvel, observa o movimento suave das asas, lançando ao avô olhares triunfantes. Quando ela levanta voo, o menino, já esquecido da sensação estranha da grama em sua pele, corre atrás dos irmãos e primos.
Até que resolve mudar de direção, girando o corpo. Com isso, o sol às suas costas fez com que se formasse, diante de si, uma sombra grande e gorda, que se parecia com ele, mas não era ele. Bernardo para, dá um passo para a direita, a sombra o acompanha. Levanta os braços, sacude a cabeça, tudo a sombra reproduz. Isso não parece nada bom. Resolve sair em disparada, mas a sombra segue em seu encalço. E o guri começa a ficar nervoso. Dá chutes no ar, querendo se livrar da própria sombra, sem sucesso. E começa a chorar. As outras crianças o cercam. Betina, a irmã mais velha, se abaixa para escutar o lamento. Cochicha alguma coisa no ouvido de Davi, que cochicha no ouvido de Jujuba, e o telefone sem fio se faz. Colocam-se em linha contra o sol, braços dados, Bernardo ao centro. Marcham para a direita, saltam num pé só, balançam seus corpos, e vão mostrando ao miúdo que todos têm sombras. Se existe luz, sombra também há.
À sombra de tamanha sabedoria, assombra-se o avô.