8 Marcelo Alves

Entre duas datas

Adoro viajar. Quem não gosta, certo? Claro, existem os que preferem não ultrapassar as linhas imaginárias. Mas, ao nascermos, todos ganhamos um bilhete de viagem. E não há como dele não fazer uso. A rota será construída dia a dia, os tic-tac serão os mais variados, a data e hora da chegada ao destino é invisível no tal bilhete. A cada um caberá ser o dignatário de seu voo.

Aprendi a importância de planejar minhas viagens. Contrariando o pensamento linear que planejo para tudo fazer, me utilizo dessa organização para obter oportunidades, inclusive quando algo previsto não acontece. A exemplo da mitologia grega, meus planos se propõem a atender a força implacável de Chronos, o Deus do Tempo Cronometrado, considerando a relevância da presença de Kairós, o Deus do Tempo Oportuno, com a ideia de qualificar as experiências dos caminhos percorridos.

Por vezes me pego a divagar sobre a forma que esses meus dois tipos de tempos foram captados pelas pessoas que cruzaram o itinerário do bilhete recebido no momento do corte do fio que ligava meu corpo ao de minha mãe. Terá alguma importância o meu cotidiano ou as oportunidades que aproveitei quando o destino me conduzir ao último ponto dessa travessia? O que será – e se será – escrito, falado ou lembrado quando meu corpo e minhas ações estiverem, ambos, aprisionados e referendados por um único tempo verbal: o pretérito, quando eu deixar de ser, é, para me transformar no, foi? A exemplo de meu amigo René, nessas horas ouso refletir: “daria tudo o que sei pela metade que ignoro.”  Sim, meu amigo de cabeceira, René Descartes, aquele que também se aventurou a dizer, “penso, logo existo”.

Essa passagem verbal, do ser e estar no presente, para ser e fazer parte do passado, tem uma dinâmica incontrolável, humana (ou desumana?). Entre as películas assistidas, me veio aquela em que a personagem convida familiares e amigos para o funeral da sua morte, que de fato, ainda não ocorreu. Fica escondida, a observar e ouvir o que dizem a seu respeito. Também recordo um outro filme em que o corpo de um rei, ao ser encontrado em uma rua qualquer de uma cidade de seu país, a partir de pesquisa e trabalho de historiadores, tem sua história apresentada por uma narrativa diferente da, até então, conhecida. Tenho algumas ideias ao relembrar essas cenas e, ao abrir meu bloco de notas, elas, as ideias, são interrompidas por uma voz que se achega ao meu lado.

Sou convidada a afivelar o cinto de segurança, pousaremos em poucos minutos. Olho pela janela e vislumbro as poucas moradias em torno do aeroporto. Passei alguns meses a organizar essa incursão em um país que me apresentará duas maravilhosas oportunidades. A de fotografar a vida dos animais na savana e a de realizar trabalho voluntário em dois orfanatos. Há um tempo decidi deixar um pouco da minha história a ser contada por imagens e por literatura. Assim, quem sabe, quando eu passar do é para o foi, minhas ações e decisões possam servir para que, minha família e a quem mais interessar, entenda algumas das motivações que levantaram poeira nas minhas estradas.

Enquanto isso, a paisagem se modifica, as nuvens adquirem contornos e volumes variados, imagino que terei dias de chuva, outros de sol, alguns deles, quem sabe, nublados. A pista recebe a aeronave. Abro a bolsa e, ao vislumbrar o bilhete da viagem em curso, procuro a data e horário de chegada ao destino. Estão ali. Respiro fundo e agradeço a meus aliados: Chronos e Kairós.

Continuo em voo.



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