Tem coisa mais poética do que uma foto em preto e branco, em que luz e sombra se enamoram tão sedutoramente? Como esta que ocupa a tela do meu computador e me faz querer sentar ao lado dessas duas jovens mulheres, rostos verdadeiros, carne, osso e alma. Tenho pra mim que se chamam Maria: Maria do Desterro e Maria da Consolação. Nasceram no mesmo dia cinzento, em que a chuva se derramou no sertão árido onde vivem. Desde então, são amigas, irmãs, até.
Maria do Desterro tem esse olhar felino, a boca a meio caminho de um sorriso condescendente. Na lida diária, o trabalho pesado no campo não a assusta, e as mãos embrutecidas, tomadas de calos, mostram que a força de seus braços conduz a enxada com firmeza. Pessoa de poucas palavras, mas não necessariamente tímida, ela navega pelas sombras, um olho no peixe, outro no gato. Nada lhe escapa.
Consolação é de outra estirpe. É fácil imergir em seus olhos telúricos, no rosto arredondado, nas bochechas sinceras. A medalha de Nossa Senhora do Rosário junto ao peito denuncia a peregrinação contínua, sinal da cruz, ao amanhecer; a cruz sobre os ombros exaustos, ao anoitecer. Não há riso em seus lábios, mas um facho insuspeito em suas pupilas pressagia gargalhadas generosas, a despeito da faina cotidiana.
Há cansaço e sonho sobre seus ombros. O cansaço das horas, o sonho da vida.
De pé desde a madrugada, muito antes do raiar do sol, colhendo mandioca nas lavouras comunitárias, Maria do Desterro e Maria da Consolação perseguem sua sina. Oito, dez, doze horas de labuta. Nas mãos há tanta terra que as unhas desaparecem. A barriga ronca alto, a fome reclama o pão. Mas não há tempo a perder. Banham-se da melhor forma possível nas bacias esmaltadas, cheias de água fresca, que D. Maria da Glória dispõe no quintal. Lavam-se com sabonete caseiro, rosto, pescoço, braços, pés. O suficiente para enfrentar a próxima jornada.
Recostadas na parede de madeira, elas esperam. No regaço, repousam o caderno de pautas largas, o lápis preto nº2, a borracha branca.
Desde que a escola noturna chegou ao sítio, elas não perdem uma aula. Essas duas, bem sei, subverterão a lógica da Vida Maria, retratada no curta de 2006. Nele, gerações de Marias mal e mal aprendem a garatujar seus próprios nomes, enquanto a vida reclama o trabalho como condição para a sobrevivência. Ler e escrever jamais se concretizam, cada Maria vai parindo seus filhos e apagando a si mesma, com se borracha fosse.
Mas Desterro e Consolação são grafite afiado, já sabem Ciência e História, Matemática e Português. Nas turmas multisseriadas, sentam-se com os colegas, compartilhando seu saber mais com quem menos sabe. A professora organizou uma pequena biblioteca, em caixotes de madeira que ganhou de um feirante. Aos poucos, o acervo vai crescendo. Há livros didáticos, lições para ensinar e aprender. Um dicionário e uma gramática. E os livros de sonhar e ser livre por inteiro: Vintém de cobre. Para gostar de ler 1, 2 e 3. Contos de fadas. Piadas do Joãozinho, trava-línguas e adivinhas. Clarissa. Capitães de areia. Nariz de vidro. As Marias os consomem, um a um.
Desse jeito, vai crescendo também a alma das Marias, para além do enquadramento de luz e sombra, retrato em preto e branco, espaço-tempo em que as conheci. Marias da Transbordação.