Esta é a história de R. Um garoto franzino e alegre, filho do meio de uma família de classe média. Os irmãos tinham pouca diferença de idade. Todos os fins de semana, o pai lotava o velho carro e partiam para lugares que ele achava incríveis. Praias de rio ou mar, cachoeiras, mata nativa, parques ecológicos, ou simplesmente a praça do bairro vizinho. Aos cinco anos, sonhou com o aquário gigante que viu na televisão. Com as mãozinhas ao alto, abraçava o enorme vidro transparente, como se fizesse parte daquele universo, onde os seres marinhos eram anjos inalcançáveis no céu de água azul. Ficou verdadeiramente encantado com o sonho, e fez com que o pai prometesse levá-los, um dia, para conhecer um de verdade. Tinha a alma doce e fazia muitos projetos mirabolantes para o futuro. Quis ser poeta, escritor, artista de circo, cantor e compositor. A cada projeto, a mãe, sempre muito prática, investia com firmeza: Isso não dá dinheiro.
Já na adolescência, queria ser dentista, como o avô, mas a realidade financeira da família se impôs. Acabou Contador, como o pai e a mãe. E torcedor do Grêmio, tal qual o irmão mais velho. Não era o filho mais bonito, nem o mais inteligente. Nunca se preocupou com isso. Era tranquilo e ponderado. Não foi um desportista, mas praticava vôlei no colégio. E não faltava à tradicional pelada do fim de semana com o irmão na Pracinha Florida. Também gostava de compor pequenas canções, e ganhou um violão da madrinha. Cantarolava baixinho no quarto quando o irmão não estava. Isso não dá dinheiro, a voz da mãe sempre ecoando na sua mente. Levava uma vida medíocre. Comum, mas feliz. Apesar de um tanto introspectivo, era bem popular. Casou-se com a segunda namorada, que conheceu no bar da faculdade. Uma garota alegre e bonita, estudante de Letras, que fazia poemas. Também ele tinha gosto pelas palavras. Mas tudo o que era lúdico tinha ficado para trás. Até que surgiu aquela moça cheia de versos e de boa prosa. Ela reabriu os espaços do sonhar, que estavam ocupados por tantos Balancetes e Contas. Gostava de caminhar sozinho, mas logo se acostumou a andar de mãos dadas com seu amor. Depois, com os filhos, e esperava ter tempo de fazer o mesmo com os netos.
Como um bom caminhante, ia e voltava a pé do trabalho. Apreciava a arquitetura histórica da cidade. Os detalhes dos prédios antigos em contraste com os vidros espelhados dos modernos eram a deixa para suas reflexões. O garoto de antigamente em contraste com o homem de hoje. Lembrava das inseguranças de menino, das dificuldades na adolescência, das descobertas da vida adulta. Da parceria com os irmãos. Da presteza da mãe ao atender as necessidades dos filhos. Tudo passava como um filme na cabeça. Seriado, um capítulo a cada caminhada. Fazia frio nos últimos dias, mais do que se esperava para o fim de abril. Respirando pela boca, saía um bafo fumacento, e ele se divertia como criança que finge estar fumando. Tantas coisas boas a vida lhe dera. Tantas oportunidades, amigos, clientes e família. Sim, era um homem com uma profissão e uma família. Não mais aquele menino confuso e indefeso. Esse pensamento aquecia seu coração. Tudo o que vivera até os cinquenta anos valera a pena.
Mas, nada disso é verdade. É só uma história inventada. Poderia ter sido, mas não foi. Não foram cinquenta, foram só cinco. Não teve tempo de viver.
O disparo que tira a vida, às vezes vem do bandido, às vezes, da polícia. Em outras, não vem de arma de fogo, vem do alto, como um raio. Vem do próprio criador.
Assim foi. Com as mãos ao alto, o menino subiu ao céu.