4 Marcelo Leal

Sonhos e outras realidades

Há duas maneiras de compreender a preparação tradicional das meninas-moças em idade de conhecer pretendentes num passado que parece longínquo, mas que em tempo histórico foi ontem. A que me refiro? Aprender cozinhar e dominar a arte de preparar doces; acolher, zelar e educar as crianças; manter a casa organizada e limpa e, claro, costurar roupas novas e consertar as usadas. A primeira se dá ao aplicarmos a régua dos tempos atuais (no Ocidente, deve-se frisar). A segunda é contemplar o reconhecimento de diferenças estruturais inescapáveis.

Creio que nenhuma mãe de hoje estaria preocupada em matricular sua filha adolescente em um curso de culinária, puericultura, corte e costura, tricô ou bordado. Também despenderá pouco ou nenhum tempo ensinando a aspirar um tapete, engrossar o feijão, lavar roupas delicadas, hidratar sapatos de couro (ainda que veja muita utilidade em tais e outras tarefas semelhantes). No máximo passará as “receitas de família” se, por sorte, as recebeu e soube valorizar. Sua preocupação estará voltada ao Vestibular ou ao Enem, com certeza. Ou para outras habilitações que signifiquem ascensão profissional. Por fim, buscará, com legitimidade, exemplos de pioneiras que se destacaram num tempo em que a sociedade esperava da mulher o domínio das prendas do lar e nada mais. Um tempo repressor.

Só que temos um problema para resolver: neste mesmíssimo passado de pré-industrialização (e nem vamos falar na revolução tecnológica), tudo era feito em casa. Ou quase tudo. O trabalho doméstico não estava no patamar das lutas igualitárias: havia trabalhos domésticos de parte a parte. Trabalho infantil também. Junto com a profissão, homens também tinham tarefas, tarefas brutas a cumprir – seja em carpintaria, ferramentaria, segurança, doma da natureza em geral. Ter uma máquina de costura em casa significava calor, proteção, respeito social, desde que alguém soubesse costurar. E o esforço de lidar com ela era bem menos extenuante do que, por exemplo, o manejar de um moinho. Sim, para ter farinha se dependia de moinhos – para ficarmos nos exemplos mecânicos.

Tanto quanto horizontes estreitos para as mulheres, havia urgências próximas, todas ligadas à sobrevivência. Além disso, a vida dos homens também não era um mar de rosas e, na média (diria na quase totalidade), também muito limitada. Portanto, ser antimachista não significa ter vergonha de papéis estabelecidos num passado dito e havido patriarcal. Significa compreender tais divisões e questionar sua atualidade. Mais: agir de modo transformador nos mais diversos ambientes e, de maneira especial, na intimidade familiar. Educar os filhos a compreenderem a mudança dos tempos como desafiadora em termos de relações, mas fichinha perto do que submetia as famílias século e meio atrás – tempo em que tudo era feito em casa.

 

– Vê, minha neta, minha vó tinha o maior orgulho de sua Singer, igual àquela que você viu no museu. Um sonho, o maior presente que ela ganhou do marido. Suas amigas morriam de inveja!

– Que horror, vovó, que horror! Aquele homem era um monstro!

– Ah, não, eles formavam um grande casal.

– Vó, a pergunta é: o que ela sabia?

– Costurar, por exemplo. Entre outras coisas, sabia costurar.



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