4 Marcelo Leal

Saenger e Singer na roda da vida

Conheci apenas uma de minhas avós. Morreu quando eu tinha oito ou nove anos e sempre morou longe. Não foi possível criar vínculos. Da avó paterna pouco sei, além do básico. Também partiu cedo, mais ainda do que a outra. Sei, entretanto, que ambas tinham máquina de costura. A mãe da mãe chamava-se Zulmira e deu origem a parte do meu nome. Era uma mulher miúda, de óculos, cabelos curtos e grisalhos. Algumas lembranças são minhas, outras, de ouvir os filhos falarem. Ela costurava, como toda a mulher de sua época, nascida e criada para as prendas do lar. Teve seis filhos e morava para fora. É assim que os gaúchos se referem às pessoas que moram no campo. Meu avô era arrozeiro. Tantas crianças para vestir e com dificuldades para ir à cidade comprar roupas novas, precisava mesmo costurar.

 

A costura, como o tricô e o crochê, eram habilidades passadas de mãe para filha. Minha avó aprendeu com a mãe dela, que, por sua vez, deve ter aprendido com a própria mãe. Assim era naquela época e assim foi ainda por muito tempo. Vó Zulmira ensinou as três filhas a costurarem na velha máquina de ferro preta, da famosa marca Singer, que fazia trocadilho com seu sobrenome, Saenger. E as filhas, mais tarde, ensinaram suas filhas. Aprendi fazendo roupas para bonecas e ajudando a mãe em pequenos consertos. Já produzi peças novas, de baixa complexidade, quando jovem, mas, agora, faço só o básico.  Não vou além de consertos, customizações e reformas simples. Nosso tempo é o da globalização e das roupas feitas na China, baratas e descartáveis. Mesmo as de mais qualidade têm preços acessíveis e não vale a pena confecionar em casa.

 

Não sei com quem ficou a velha Singer depois que a Vó se foi. Pensando nisso, só hoje percebo a relíquia, cheia de histórias e significados, em que se transformou aquela máquina. Talvez nem esteja mais na família. A mãe teve uma parecida, de ferro, com correia e pedal, onde nós, crianças, gostávamos de brincar de carrinho, girando a roda da correia para um lado e para outro, fingindo ser a direção. Em determinado momento, recebeu um upgrade, com motor e um pedal pequeno, que mais parecia um acelerador de carro. Mas não resistiu ao culto do descarte e, logo, foi substituída por uma mais bonita e leve, de plástico. Também não percebemos a tempo a relíquia que era – portadora da nossa história – e a deixamos partir sem culpa.

 

Das tantas prendas de nossa mãe, Magda e eu nos habilitamos em poucas. Ambas sabemos costurar e tricotar. Ela se dedicou mais ao tricô e eu, à costura. Nenhuma nunca chegou aos pés da qualidade e do capricho da mãe, mas a gente se vira. Nos fartávamos de acompanhar as mãos da mãe a tecerem roupas e outros tipos de arte todas as noites. Nunca demos o devido valor. O bacana para nós era podermos usar roupas industrializadas, iguais a todos os amigos. Depois de adultas, lamentamos nunca termos dado nem os primeiros passos no crochê. Essa habilidade nunca tivemos.  

 

Eu só tenho filhos homens, não passei meu legado da costura. Eles não têm interesse nessas coisas. Magda tem uma filha com alma de artista, que se interessa pelas artes manuais. Como tudo na vida vai e volta, o crochê está em alta. Deixou de ser coisa de avó. E a garota quer aprender! Mas, quem poderia ensinar com amor já não está entre nós. Sempre penso em quanto orgulho ela teria de poder passar para a neta os segredos da agulha mágica, que transforma fios de linha em obras de arte.

 

Desencontraram-se.

O tempo de aprender não foi o mesmo de ensinar.


gostou? comente!

Rolar para cima