Gosto tanto que estou sempre grudado nela. Nossos dias são cheios de brincadeiras enquanto minha linda mãe faz um montão de coisas, quase sempre naquela cozinha gigante. Que olhos bonitos ela tem… um azul da cor do céu.
Como vou na escola pela manhã, aproveito as tardes para me divertir e ajudar. Às vezes nas comidas, outras quando ela fazia florzinhas e também quando usava aquela máquina supimpa e barulhenta que ela cortava e arrumava um monte de panos. Ainda bem que não tenho temas para fazer em casa.
Fico muito feliz vendo ela fazendo esse mundaréu de trecos. Quando termina, tudo está lindo: roupas bem bacanas, flores coloridas com umas bolinhas no meio ( às vezes mastigava aqueles trocinhos sem ela ver ) e comidinhas deliciosas. Amo muito isso tudo. Quando tem docinhos então, me lambuzo pra valer. Como pode? Parece que ela faz mágica!
Tenho visto ela mais cansadinha nos últimos dias. Tem tardes que escolhe ficar deitada dormindo, depois de engolir uns cacarecos pequeninhos. Parecem drops Dulcora, só que branquinhos. Deito juntinho dela com meus gibis do Zé Carioca, Mickey e Pato Donald.
Meu pai José, quando chega do trabalho, tem feito a janta para deixar ela descansando mais um pouquinho.
Natal passado, o Papai Noel não veio aqui em casa e os presentes foram poucos desta vez. Deve ser porque meus pais parecem estar tristes. Não entendo bulhufas, mas acho que vai passar.
Estes dias, meu pai me disse que ela estava doente e que aqueles pacotinhos que chegavam do meu dindo Alcides, vinham de um país chamado Alemanha e que ajudariam a deixar minha mãe melhor. Penso que é algum tipo de drops diferentes, sei lá.
Um tempinho depois, ele nos contou que ela precisaria ir até o hospital, porque lá os médicos poderiam cuidar melhor dela e que, nestes dias, eu e meus irmãos teremos que passar uns dias com nossa tia Irene, irmã dela.
Sempre adoramos ir na casa da tia Irene e do tio Hilário. Eles são muito brincalhões e sempre têm comida diferente e gostosa. Pena que não podemos ir no colégio, meu tio vai muito cedo para o trabalho.
Como sempre, fazíamos travessuras o dia inteiro naquele pátio grandão, cheio de árvores e correndo com o Sultão, cachorro bobalhão que meu tio sempre levava para atirar nuns bichos no meio do mato. Também íamos na loja de madeiras do tio, subindo e descendo as montanhas de madeira. Uma fuzarca só.
Tem dias que meu pai nos busca para irmos até o hospital ver a mãe. Pena que cada vez mais estão demorando para chegar.
Lembro agora o que meu pai falou quando estivemos no hospital na última visita : a mãe de vocês está muito doente e, logo logo, vai descansar no céu.
Hoje acordamos cedo e voltamos para a casa. Tomamos banho e vestimos uma roupa estranha, toda preta. Acho que vamos passear. Até a tal de brilhantina meu pai passou nos nossos cabelos. Que coisa melequenta – nos deixou com cara de lelé da cuca.
Todas as pessoas tristes e sérias. Ninguém se divertindo. Lugar feio e muita gente vestida igual. Roupas escuras.
Colocaram uma caixa bem grande num buraco na terra. O padre falando coisas que eu não entendo patavinas e as pessoas chorando. Não choro porque não tenho motivo, eu acho. Não sou nenhum bidu, mas aquele buraco não é o céu. Sei lá né ?
Me enfiar embaixo daquela máquina maluca da mãe, para brincar de aviãozinho, não tem mais graça nenhuma. E agora … e agora José ?
Poema José, de Carlos Drummond de Andrade em 1942.