4 Marcelo Leal

A máquina que construía histórias

Olhando fotografias de família, mais precisamente observando as mulheres que pertenciam ao clã de minha mãe, esbocei um sorriso pensando: que mulheres eram essas!

Cresci em meio a rolos de tecidos de seda, de crepe de cetim, agulhas, canutilhos, pérolas, cristais, carretéis de linhas, fitas mimosas, botões em formato de flores, revistas de moda, moldes de roupas de festa. Minha mãe era costureira, ou usando um termo pomposo – modista, e sua clientela era composta pelas mulheres da família e amigas dessas. Dedicava seu trabalho somente para produzir vestuário de festejos, que tivessem o objetivo de, ao se moldarem aos corpos femininos, celebrar a vida.

As cerimônias tinham suas datas marcadas com certa antecedência e, sendo assim, minha mãe conseguia organizar uma agenda que pudesse atender a um número significativo da lista de clientes. As primeiras sessões, ou visitas, eram ocupadas de forma espaçada, recebendo uma ou duas mulheres por dia. Esse início dos trabalhos era tranquilo, regado a dúvidas e decisões quanto ao modelo, tecido, com bordado ou não, se caberia um decote mais ousado ou alguma transparência nas mangas, no colo ou no final das saias. Mas, à medida que os vestidos iam tomando forma, era um entra e sai, e eu ansiava pelo infalível intervalo, ou seja, a reunião de todas na outra saleta.

Foi nesses intervalos que comecei a fumar. Não um cigarro inteiro, óbvio. Mas a mulherada pedia para eu acender o cigarro delas. A maioria dos maridos desconhecia essa questão. Será?!  Enquanto isso, a senhora que ajudava minha mãe, se ocupava em filtrar o cafezinho. E eu, também, comecei a apreciar esse líquido que acompanha minhas tardes desde então.

Enquanto as xícaras de porcelana branca com frisos dourados recebiam marcas de batons, fofocavam e pitavam – todas usavam piteiras naquela época. Eu observava os cílios postiços e suas mãos, com longas unhas bicudas e esmaltadas de vermelho. Não lembro de ninguém esmaltar de branco. No mínimo um rosa forte. Somente minha mãe usava base transparente – para não manchar os tecidos, eu imagino.

Na prova final, era como se a festa fosse acontecer em um salão contíguo. Elas chegavam em grupos, maquiladíssimas, com os cabelos cacheados – soltos ou presos em presilhas brilhantes, ou em altos coques enlaçados por fitas e com franjas alisadas, sapatos de salto forrados. Todas agitadas, falando alto, nervosas em frente ao espelho à espera da resposta à pergunta silenciosa: serei a mais bela no salão?

Os vestidos tinham, no mínimo, quatro saias, acinturados, e os pequenos botões abraçados por inúmeras micros casinhas. Raramente eram usados zíperes nesse tipo de vestuário. Entre a prova de uma e outra, a saleta de reuniões era mesclada por fumaça e perfumes. Na mesa onde, geralmente, ficava o café, minha mãe deixava muitas balas de hortelã para que elas retirassem do hálito as evidências do fumo.

Um cabideiro longo recebia as peças prontas, guardadas em capas de tule branco feitas por minha mãe. Eu adorava entrar na sala de costura quando não havia mais ninguém, admirando uma por uma, tal como faço nos dias de hoje, ao entrar em centros culturais e ficar em frente às obras de arte. Cada peça parecia sussurrar as histórias contadas por aquelas mulheres, incluindo alguns segredos que somente eu supunha conhecer. Minha imaginação passeava de vestido em vestido, construindo a noite em que eles estariam dançando, rodopiando e alegrando os olhos de todos os convidados. Ao sair da sala, jogava meu olhar para a máquina de construir histórias a partir de tecidos e linhas. Histórias que festejavam a vida.


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