Às vezes, no transcorrer do dia, paro e penso naquela música: devia ter trabalhado menos, ter visto o sol se pôr. Claro que a letra tem mais poesia e reflexão do que a apresentada por esse trecho, mas ele, por si só, renderia um romance para cada ser vivo desse planeta que labuta desde e desde, convicto de que trabalhar é a parte que lhe cabe nesse latifúndio.
Nasci em uma família que me apresentou o mito de Sísifo na tenra idade, associando a cansativa e diária tarefa de rolar a pedra com a essência de ser humano. Viemos ao mundo para trabalhar, dizia meu pai, e, com isso, teremos a certeza de, não só garantir a sobrevivência, mas de sermos felizes. O trabalho dignifica. Eu, inconscientemente, creditei meu voto na dignidade. Desconhecia a significância.
Vivi anos dessa breve existência, com a ideia de que não importa quanto tempo você dedica ao trabalho, contando que trabalhe e, se maior for a dedicação ao labor, melhor. Caso a diversão fique prejudicada por isso, não se incomode, pensava eu, pois só teria momentos de alegria se a garantia de ser produtiva estivesse assegurada. E, cotidianamente, rolava a pedra ladeira acima, horas a metro.
De fato, eram várias pedras, pois também integro a geração que colocou a ideia de Mulher Maravilha como nossa referência feminina. A pedra da profissional, a da mãe que dá conta de criar os filhos, a da dona de casa que resolve os problemas de encanamento até a escolha do carro da família, a daquela que quer ser saudável e atraente, então, vai para a academia, estuda e prepara cardápios lowcarb e orgânicos, arrasa na harmonia facial. E o pedregulho de achar tempo para viajar, não para se divertir, mas para adquirir e compartilhar conhecimentos, cultivar sabedoria.
Não poderia estar ausente na minha coleção de pedras e cascalhos, a da esperança equilibrista que cantarolava nas minhas costas que esse show precisaria continuar. E continuou, até que, o destino que rege nossas vidas, ao me estender a mão, levou-me a fazer a metade do Caminho de Compostela. Claro que fiz em duas etapas, pois as questões existenciais que acompanham a empreitada diária de empurrar pedras reivindicam um tempo para serem compreendidas e, quando possível, modificadas.
A cada manhã, o trajeto me proporcionava encantamento com detalhes, tais como flores, borboletas, joaninhas; balé das nuvens, árvores copadas com formas e cores de folhas diversas; pão e vinho caseiros. Fui assimilando que, para observar e vivenciar essas belezas, eu precisava de ócio, calma, menos exaustão. Foram duas semanas em que depositei, gradativamente, lascas de algumas das minhas pedras pelo caminho. Outras abandonei total.
Em suma, deixei minha mochila mais leve, com o entendimento de que, mesmo que por algum tempo ainda precisasse empurrá-las, por terem menos peso, haveria horas extras para soltar meu riso em algum lugar e, com quem por esse local estivesse.
Alguns anos já se passaram e, o dia a dia continuou requerendo a execução de trabalho. Mas diferente daquele em que, inicialmente, fui aprendiz, pois, a esse trabalho agreguei significado, prazer, alegria e outras pessoas. Me deleito com pequenas coisas e oportunidades que a vida oferece. Quem já não vestiu óculos coloridos e foi feliz, correndo em praças, com grãos aprisionados em suas mãos, atrás de pombas, pelo simples desejo de alimentá-las?
Eu já fiz isso, dando risadas. Com os tais óculos ou sem eles.