2 Phil Devries

Todos somos bons e ruins

Não sei vocês, mas em meu primeiro núcleo familiar, mãe, pai, irmão e eu, ao nos sentarmos à mesa para qualquer refeição tínhamos, à luz da orientação paterna, a proibição de discutir política, religião ou futebol. Esse último demarca assunto recorrente nas mesas de famílias brasileiras. Eu sou brasileira, certo? Meu pai, descendente de italiano, proclamava que a hora da alimentação era sagrada e, portanto, não cabia ali debatermos nossas divergências.

Eu pensava que isso era algo, até certo ponto, adequado visto eles, pais e irmão, vestirem camiseta de um time adversário ao meu. Cada um deles ajoelhava para uma religião diferente enquanto eu lia Darwin. Meu tutor político era meu avô materno, cabo eleitoral de esquerda, meu pai lia biografias de Mussolini e odiava os militares, meu irmão jogava pôquer e assistia ao programa do Chacrinha e minha mãe nunca declarou qualquer ideologia. Esqueci de referendar que assisti ao golpe militar de 1964 aos meus oito anos de idade. Com nove já fazia a contabilidade da microempresa de transporte do meu pai. Outra geração – nem melhor nem pior das que vieram depois, mas que, para muitos de nós, fez com que a infância terminasse bem mais cedo.

A roda do tempo girou e constituí minha própria família. Inicialmente éramos cinco e, quando os conjugues foram formalizados, o número de cadeiras ocupadas ao redor da mesa ampliou-se para sete. Havia muito barulho no momento das refeições, conversas sobre assuntos variados, mas percebi que, mesmo sem nenhuma determinação, os temas política, religião e futebol foram gradualmente sendo evitados. Não por falta de tentativas de debates sobre eles, mas, ao serem mencionados, alguém argumentava: melhor evitar polêmicas à mesa. Cada um na sua bolha. Mas há aquele dia em que alguém não se cala. E a menina, sem aviso prévio, acendeu o estopim: qual é o problema das pessoas dessa casa? Por que não se discute política e religião?

Matrizes de pensamentos diferentes tomaram conta do ambiente, e isso é positivo, pensei eu, observando o debate. A questão que me fez refletir passou longe das visões divergentes que foram anunciadas, mas sim, sobre a dificuldade que se estabeleceu em manter uma interação amigável entre os opositores. Afinal, cada pessoa é um indivíduo, mas meus três filhos tinham recebido a mesma educação, estudaram em colégios similares e mantinham, entre os diferentes grupos de amigos, vários deles em comum. Qual foi a parte da história deles que eu perdi?

Quase nada foi perdido. Ocorre que as pessoas não são somente produto das ideias que as rodeiam, trazem nos genes configurações cerebrais que lhes caracterizam e as fazem desenvolver narrativas de vida singulares. É do humano defender seus próprios interesses e, sendo seres gregários, tender a formar e se inserir em grupos que compartilham ideias e ideais. Mas também temos a capacidade de buscar o entendimento do que nos faz ser e pensar diferente e ter o cuidado de desacordar com o outro de forma respeitosa.

Quando nos reunimos atualmente, a ordem da mesa é debater sobre o que cada um decidir, desde que à luz do pensamento acordado entre nós: respeitamos as diferentes perspectivas dessa mesa. Queremos conviver então vamos tentar encontrar um jeito. Todos somos bons e ruins, também. Somos humanos.                                  


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