Quando criança, conheci um Pracinha da FEB. Todo ano ele vestia, orgulhoso, o uniforme do Exército, para desfilar no Sete de Setembro, como integrante da Força Expedicionária Brasileira, que lutou na Segunda Guerra Mundial, em solo italiano, junto aos aliados. E nós, com nossas bermudas ou saias azul-marinho pregueadas, camisas brancas, gravata e meias esticadas até os joelhos, admirávamos aqueles homens, que carregavam uma aura de heroísmo e melancolia, e também um ranço de álcool, no caso de alguns deles.
Zé da Roda era nosso vizinho, um senhor afável e assustadiço. Qualquer estopim o fazia dar pequenos pulos e sacudir a cabeça grisalha. Consertava as correias das bicicletas das crianças, remendava pneus e, de quebra, contava histórias aterrorizantes de seus dias como soldado.
As tropas ficaram sediadas na Itália por quase um ano, e os combatentes participaram de muitas batalhas, como as de Monte Castelo e Montese. Zé da Roda foi designado a uma cidadezinha medieval, de ruas estreitas e prédios destruídos, cujo nome eu esqueci. Mas o que não esqueço é a carranca assombrada com que ele nos falava da Peste. Era assim que ele se referia à guerra, uma praga, uma doença que contamina o coração dos homens.
– Uma noite, havia muita neblina, e eu não enxergava nem meu próprio rifle. Fomos pegos de surpresa, ninguém sabia bem o que fazer. Um grupamento de nazis invadiu a cidade em silêncio, armados até os dentes, com máscaras antigás cobrindo seus rostos, granadas e armas em punho. A luta durou até o amanhecer, deixando as ruas cobertas de corpos de ambos os lados. A guerra, sabe, é a grande peste, um mal que adormece, mas nunca vai embora.
Desde então, duas imagens se sobrepõem em minha mente quando ouço falar em guerra química: a máscara antigás usada pelo exército alemão e a máscara da peste negra, usada pelos médicos no século XIV, imitando a cabeça de um corvo. A Peste se tornou, para mim, uma entidade. Ela entrou pela porta sem cerimônia dia desses, quando eu assistia ao jornal. Na tela desfilavam, altivos, jovens em uniformes nazistas clássicos ou estilizados, carregando bandeiras com a suástica, braçadeiras, quepes e máscaras antigás. A voz em off do jornalista explica tratar-se de uma Parada neonazista que reuniu um bom número de pessoas, em algum país europeu.
Das calçadas, transeuntes espiam o movimento, divididos entre aprovação e apreensão. A câmera, lentamente, dá um zoom em direção a um homem fardado por completo, levando ao colo uma menina de cabelos dourados. Esse pseudo-soldado encara a lente, o rosto coberto pela máscara ameaçadora, sem medo, enquanto a criança traz os lábios fechados, a face tensa, os olhos baixos, mirando outra direção.
Em meio à marcha, fogos de artifício espocam sobre a praça.
Zé da Roda tinha razão. Desperta, A Peste desfila entre nós.