Fiz poucas mudanças de endereço na vida, principalmente na comparação com alguns conhecidos. Um caso emblemático, por exemplo, é de minha querida amiga Ivone, em cujo título do primeiro livro de crônicas – o qual organizei com muita honra – apresenta Onze casas antes de casar. Ou seja, no intervalo entre ela ser criança e moça, a família se mudou mais de dez vezes… Mesmo com experiência rasa no assunto, sempre achei curioso constar nas perguntas para orçamento das empresas de transporte o indefectível “Tem piano?”. Ou seja: as mudanças se dividem em duas, com e sem piano.
Isso me traz outra lembrança: a expressão “coube a mim carregar o piano”; ou de suas irmãs “na empresa, é ele quem carrega o piano”, “no projeto falta definir quem carregará o piano”, “seu talento é ser o carregador de piano”. Parece que, desconsiderando a beleza do instrumento musical, sua capacidade de ser base e solo numa só música e de amparar com frequência grande parte dos maiores compositores, o piano, por seu porte, está intimamente ligado ao fardo, ao custo, ao sacrifício. Em algum momento, todo pianista deve ter invejado quem escolheu se dedicar à flauta transversa…
Transportando isso para nossa vida, há que se pensar no custo de ter – ou ser – um metafórico piano no momento das mudanças por vezes necessárias. Para tal comparação, antes vamos dividir outra vez por dois: pianos ativos e pianos mais para móvel de decoração. Quem é um enorme piano de cauda nessa existência, e ocupa espaços ao mesmo tempo em que executa belíssimas melodias, ser bagagem tão cara e pesada pode implicar em certo imobilismo compreensível. Mudar de vida para um destino onde ele será desnecessário significará sacrificar sua dedicação e talento. Sua história. Daí a resistência para encarar mudanças, ou o custo elevado de mover-se pianamente.
Mais curioso é o ônus de ser um piano mudo. Algo que obedeceria a esta pauta: minha vida é grande e pesada como um piano sem que eu usufrua da condição, ou mesmo ofereça aos outros os benefícios de um suposto talento. Ainda assim, não renuncio a nada ou aceito mudar a vida sem carregar o que, pelo desuso, não passa de tralha. Ah, caro leitor, tal condição é mais frequente do que parece: resistência em mudar de vida mesmo quando ela seria um alívio. Desobrigar-se de tarefas inúteis poderá denunciar uma história vazia de sentido.
O que me leva a pensar: quando diante de um consultor de carreira, de um terapeuta, ou mesmo de um conselheiro menos formal, quantas vezes nos perguntaram se tínhamos piano? Então, acho que é uma pergunta válida para fins de orçamento de transporte para outra condição. Seja para indicar reforço de ânimo, seja para tirar o piano de nossas costas.
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