Sapatos velhos
Tom Saldanha
Nas pegadas das minhas botas trago as ruas
de Porto Alegre (Pegadas – Bebeto Alves)
Sempre reluto em desfazer-me de um par de calçados. É recorrente o apelo ao conforto de um artefato com o qual me acostumei e já moldou-se ao formato irregular do pé-chato que, na infância, obrigou-me ao uso de botinas ortopédicas. Mas não é isso que me apega aos tênis e sapatos antigos: são os caminhos por onde me levaram. Os passos, por vezes trôpegos, quase sempre incertos, tiveram neles o apoio que precisei.
Também não é assim, de forma clara e óbvia que questiono comigo mesmo se já é hora de dar-lhes adeus. É só um reflexo inconsciente, com um quê daquelas pequenas melancolias que não tem razão, mas teimam em nos surpreender. Existe tristeza maior que um sapato jogado fora? É quase como que um cachorro abandonado. Pior? Só um sapato velho ao lado de um cachorro, ambos sem dono.
Ao escrever sobre lembranças, não me cobro compromissos férreos com a verdade e a realidade, pois escrevo sob a influência de recursos estéticos – como dizia Bertolt Brecht. Deixo o rigorismo nas mãos dos jornalistas, historiadores e cientistas. Da mesma forma, basta-me saber que andei o suficiente para ter registrado, em algum lugar, coisas que, espanadas do pó do esquecimento, revelarão seu brilho singular.
Afinal, tudo tem um jeito especial de ser contado para que guarde semelhança com o que nos representa intimamente. E os instrumentos para medir esta similaridade fogem às convenções formais: as medidas são tomadas pelos olhos da alma.
Assim, não faz sentido escrever um tratado a cada calçado velho que abdico, alternadamente, de dar-lhe uso ou fim. Basta olhá-lo por alguns instantes com carinho, a cada vez que ele é preterido em favor de um mais apresentável. Até que a coragem me faça tomar a decisão.
Ou a vergonha.