Nós
Giancarlo Carvalho – 08/10/2019 – Oficina Santa Sede – Módulo Mosaico
Foto de Betho Giordani
O tempo é ranzinza, mas o velho é determinado, e cruza a soleira até o limite da varanda. Uma brisa fria e respeitosa lhe beija a mão, que treme segurando a bengala claudicante. A calça, larga demais, se dobra à mercê do sopro matutino, marcando as pernas finas. Mais um dia incerto, não sei se cinza ou sépia clichê, um tom meio sujo de foto vintage, esquecida na gaveta igual roupa sem uso, bibelôs e lençol antigo. Tudo escondido no fundo do tempo, aquele ranzinza. Mas esquece o tempo, velho, presta atenção no quadro. Sem cor assim, parece que vai ser um dia feio.
Bem lá adiante, um lago de superfície sisuda espera o corajoso nadador, ou a pedra atirada, para distribuir suas ondas. Quem sabe, até, o barquinho vindo de não sei onde. Por uma discreta ponte adjacente passam caminhantes, pensadores, gente e bicicleta, atletas, patinetes e poetas. No meio do quintal, uma árvore contempla. O velho se aproxima e a abraça, com intimidade. No contorno dos seus olhos, um céu acabrunhado predomina, com nuvens lentas e abundantes, carneirinhos voando num prado meio que azul, meio que não. Pelos sulcos das narinas, chega o odor de solo úmido e batido, que abriga um mundinho à parte feito de terra, grama e insetos. Arbustos laterais enfeitam o pé da orelha, e um ninho no topo da careca recebe visitantes. Nos seus galhos, antes robustos, poucas folhas se fazem de coberta, nos ombros cansados que muitos outonos e primaveras testemunhou. Invernos e verões também estão ali, marcados na pele, no tronco, na raiz de sandália de dedo, na casca dura, necessária para aguentar as desditas. Aos seus pés, folhas de matizes desconcertantes, belas em laranja ou vermelho, secas, retorcidas e crocantes, provocam som de palha durante a caminhada curta ou peregrina. E, pelo corpo, os nós que dão textura, alguns sadios, outros não. Câncer de pele, sol em excesso. Tatuagem, mais de uma, vaidade pra impressionar o amor da sua vida. Deu certo.
Aceita? Aceito pra sempre, querido. Posso escolher o nome? Pai, brinca de casinha comigo. Pai, me pega aqui, pai, me leva ali! A mamãe foi para o céu, filha. Pai, e agora? Para, pai, ele não é meu namorado! Parabéns, seja feliz com ele, querida. Pai, vou estar pra sempre contigo.
Essa vida toda, tão vasta e cheia de tudo, bom e ruim, passa assim, tão rápido, diante dos olhos, diante da árvore que só saiu um pouco para balançar as pernas e esticar os galhos. Um filme, diante dos nós, dos poucos cabelos, das folhas raras, do semblante sereno, do dever cumprido, do tronco castigado e dos olhos enrugados que já viram de tudo um muito. Um muito que ficou na gaveta, na memória, nas roupas e fotos velhas, nos bibelôs de infância, na aliança. Tempos que a árvore não esquece.
Velho, levanta! Tem grito de Vô! ecoando pela cozinha. Um sorrisão, um vestidinho de renda, chegou a maria-chiquinha! A mãe, filha, acende a lareira, põe flores no jarro e acena. Bendito entre mulheres, geração de meninas, casa de bonecas. Pula no colo, netinha, enche o outono de primavera, brinca de tatuagem, espanta o sépia e colore a manhã. Querida, vou estar pra sempre contigo.
No quadro, as bicicletas passam, o barquinho chega, mais pessoas caminham. Sopra uma brisa gostosa. A árvore pede, e ganha, um beijo na bochecha. O dia vai ser lindo.