Página noventa e oito
Alexandre Wahl Hennigen
O ritual era precioso, nascido de improviso havia dez anos, depois que o último filho havia se casado e saído de casa. Após o jantar, iam para a sala, a televisão ligada com o volume bem baixinho na novela das oito que passava às nove. Ela assistia e fazia comentários. Ele lia seus livros.
– Roberto, olha o que a Nazaré fez agora! Roubou uma criança!
– Olha só… – respondeu desatento, virando a página.
Quatro filhos, três netos. Quarenta e dois anos juntos. Conheceram-se na faculdade, os dois arquitetos. Tinham planos audaciosos de viajar pelo mundo, muito mais do que realmente conseguiram.
– Que mulher ruim! Como alguém pode fazer uma coisa dessas? Roubar uma criança! Parece até aquela outra lá, que roubou o filho da outra aquela, do rei aquele, qual era o nome?
– O Rei Salomão?
– Esse mesmo! Ele me lembra um pouco de você, inclusive.
Roberto calou, sequer suspirou. Havia entendido a referência às muitas mulheres do rei de Israel e preferiu evitar conflitos. Não tinha sido por mal, e havia anos que não cometia indiscrições. Na última aventura cogitou largar Cláudia. Ele estava com quarenta e nove anos, o menor recém tinha nascido, a pressão era demasiada. Desistiu e nunca parou para pensar nos motivos. Desde então era fiel e sentia-se um tanto resignado.
– Está lendo o que dessa vez?
– Vidas Secas.
– Ah! Adorável Graciliano Ramos. Você já tinha lido antes, não?
– Tinha, sim.
Mesmo o tendo confrontado sobre as mulheres com quem teve encontros furtivos, Cláudia nunca soube que seu casamento poderia ter acabado. Quase não tinham mais contato físico, ainda assim se sentia próxima ao esposo. Era um envolvimento diferente, não sabia precisar. Olhou para ele e sorriu.
Nazaré continuava gritando. “Sua louca! A criança é minha! Sai da minha frente!” O episódio terminou. Ambos permaneceram sentados em silêncio.
Alguns minutos depois, Roberto riu.
– Chegou na página noventa e oito? – perguntou Cláudia.
– Cheguei.