Rubem Penz em foto de Iara Tonidantel

Em partes

Rubem Penz

Parte de mim queria jogar bola, fardava aos sábados, treinava embaixadinhas, sabia de cor a escalação do Inter de 1976, passava sebo na bola de couro para – diziam – aumentar sua vida útil. Outra parte calçava sapatilhas.

Parte de mim sonhava compor a bateria de uma grande escola de samba, ensaiava as batidas do tamborim, decorava os breques de repinique, melodiava nas combinações de surdo e contra-surdo, compunha sambas-enredo. Outra parte calçava sapatilhas.

Parte de mim imaginava como seria incrível estar em Cannes concorrendo ao prêmio máximo por um filme publicitário urdido em minha própria cabeça, fosse para uma marca multinacional, fosse para um cliente muito ousado, ainda que pequeno. Outra parte calçava sapatilhas.

Parte de mim queria ter uma formação de jazz tão famosa que pessoas de outras cidades viessem para Porto Alegre com os ingressos de nossa tradicional apresentação das sextas-feiras naquele bar consagrado comprados antecipadamente. Ou disputassem as desistências como acontece nas peças da Broadway. Outra parte calçava sapatilhas.

Parte de mim criou a ilusão de ser um cronista influente, referencial, publicado e estudado em volumes póstumos, anos depois, como vejo acontecer com meus maiores ídolos destas ágeis letras das colunas de jornal. Quem sabe alguém capaz de entusiasmar outros escritores a seguir na árdua missão de transformar vida em palavras (e vice-versa). Outra parte calçava sapatilhas.

E a parte de mim que calçava sapatilhas conseguiu fazer com que eu ficasse na ponta dos pés, maior do que minha pouca altura e, em boa medida, capaz de, se não alcançar tão pretensiosos sonhos, chegar a insuspeitadas realizações. Ao menos em parte.


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