À deriva
Ronaldo Lucena
Sem dar-se conta, o mundo se despegou. Passou a vagar pelo universo do nada no hálito de ventos sedutores. Carregado pela nuvem de leveza imperceptível, sempre tentando manter a criança em sono tranquilo, sem sobressaltos, nem pesadelos. Embaçando o caos travestido de razão e verdades. Falsas verdades. Ninguém ouse avisar.
A humanidade talvez não tenha se percebido. Gritando voraz contra o espelho, diante de um umbigo herniado em arrogância, onde os dedos de unhas afiadas, por sorte não furaram, ainda, essa nuvem. Para quem vê de longe, ela parece um balão de festa em fuga, aproveitando-se de um ínterim, numa fração de tempo no descuido da mão gulosa. Ela dança sobre arbustos espinhentos. E olhos atônitos contraem ombros à espera da explosão, da falsa surpresa confirmando o estrondo imaginado, a beleza do fim transformado em ar, som e pouco resíduo. Talvez em luz, talvez em sombras, um retorno para o nada.
A nuvem lembra um dirigível, correndo o risco de incendiar inteiro em pleno voo. As membranas derretendo a invenção do homem. O combustível é o próprio homem. Sua desfaçatez diante das diferenças, das raças, dos credos, das opiniões colocam o balão mais à deriva. Por outro lado, o peso da ganância, do ódio, do egoísmo, da desimportância da natureza aumenta a possibilidade de lançar a nuvem no redemoinho de algum buraco negro, devolvendo esse pouco de substrato aos espaços do nada. Outra vez.
Entretanto, a superficialidade do sono resiste. E os sonhos recriam na borda da consciência um desejo de acordar, mesmo dopado pela cantiga de ninar do fim do mundo. Ainda há tempo de se querer uma vida menos tralhada, onde se carregue pouco peso, e as relações tenham mais transparência e fluidez. Um horizonte de escutas, de pouca imposição de verdades e ideias. O convencimento precisa brotar como fazem as florestas, dando umidade ao solo, renascendo rios que fertilizam tudo por diante.
Bom seria ter alguém vigiando esse sono, percebendo, de fora, quando a agitação do pesadelo toma conta. E que esse alguém estivesse pronto para servir aos olhos os caminhos, as portas de saída dessa nuvem, mesmo que pelas escadas de emergência.