Mike Hodges por Marcia Ribeiro

FI.C.A.I.

Marcia H de M Ribeiro

Ezequiel entrou de cabeça baixa no consultório. Seu olhar conduziu o meu aos seus pés cobertos por um par de chinelos díspares em tamanho e cor. Vez ou outra em diagonal seu olho encontrava o meu. Nenhuma vez de frente. Ouviu atento. Respondeu, no início, com monossílabos e meneios de cabeça.

A escola remetera à promotoria da infância sua ficha de comunicação de aluno infrequente. FI.C.A.I. para os íntimos. Me perguntava se percebiam a ironia da sigla. E por quê Ezequiel não fica? – queria saber o promotor.

Aqui a resposta:

Não existe ficai na escola quando do único lápis, guardado como tesouro no estojo de lata enferrujado, sobrou só um toquinho que mal dá para segurar.

Não existe ficai na escola se a roupa pendurada na cerca de arame farpado seca enquanto o corpo seminu sobre os panos rotos, que cobrem a espuma depositada no chão, aguarda com outros corpos nem tão iguais.

Não existe ficai na escola se para chegar o caminho é lamacento e a tira do único calçado, um chinelo de dedos herdado da irmã mais velha, arrebentou.

Não é possível ficar na escola se o quase caderno permaneceu sobre a goteira durante a noite de uma tempestade que acontecia fora e dentro de casa.

Não existe ficai na escola quando a barriga ronca e sobre o banco-mesa jaz um pão amanhecido, besuntado com banha de porco, para dividir entre tantos, e um chá do boldo colhido no entorno da maloca.

Não existe ficai na escola se o salário-família acaba na primeira semana, e é preciso tomar da enxada no tempo da sala de aula para não morrer à míngua.

Não há ficai na escola se a água do rio é gelada demais para lavar os cheiros da vergonha da noite sobre o corpo franzino.

Não existe ficai na escola porque o olhar mira para trás e para baixo, aquém da lousa.

Não existe ficai na escola se quem deveria também olha em diagonal para não ver o óbvio, e tudo conspira para um ficai de fora.


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