Os cães do Caminho
Ronaldo Lucena
São Francisco de Assis, em sua peregrinação à Compostela, foi convidado a pernoitar na pequena cidade de Rocaforte. Agradecido pela hospitalidade daquele povo, deitou-se no altar da singela igreja. O cajado do Santo ficou escorado na parede e absorveu umidades do chão. Brotaram raízes e pequenos galhos. Amanheceu uma amoreira, e por anos ficou dando frutos no altar. Os mais antigos da vila retiravam pequenas lascas do caule e colocavam no bolso dos meninos. Contam que, assim, teriam coragem para enfrentar perigos. Hoje a planta ainda está lá, porém petrificada.
Com a proteção santa, o caminho da peregrinação reverencia o encontro com a natureza. Não diferente do homem de Assis, muitos peregrinos percorrem as longas distâncias com seus animais de estimação.
Os cães estão por toda parte do Caminho. Os vemos recolhendo o rebanho de ovelhas, ajudando na lida do campo, cuidando da casa. Muitas vezes descansando, ficam olhando os humanos, com roupas coloridas, que passam com mochilas nas costas, sempre na mesma direção. A curiosidade e a busca pelo afeto unem as carências de ambos. E caminham juntos, pela troca de um afago, nos limites de cada um. Os cães peregrinos são acolhidos nos albergues como qualquer outro, recebendo água, ração e um bom lugar para seu descanso.
A cena pode ser bonita, mas muitas vezes é triste. Nessa relação pode sobrar alguém quando os cães partem. Muitos caminhantes acreditam que os animais estão abandonados e os levam junto.
Encontrei vários pelo caminho, de todos os tamanhos e olhares. Quando soltos pelo pátio das casas ou na beira da estrada, deviam rir, se é que se pode pensar assim, do meu medo desconfiado. Talvez nossa interação não tenha se dado de forma mais afetiva pelo meu entendimento de perigo na aproximação deles. Nos estudávamos, um ao outro. E meu olhar escaneava o ambiente para um pedido de socorro ou fuga no caso de um ataque. Eles percebiam, creio eu, e nada acontecia.
Em Berducedo, nas Astúrias, pelo Caminho Primitivo, reparti meu almoço com um cãozinho cor caramelo, de pelagem mal tratada pela vida nas ruas. Chegou com cara de pidão na mesa posta na calçada, onde eu almoçava. Ele abocanhava a comida e atravessava a rua, desaparecendo da vista. Voltava em segundos para mais um ato exploratório. Não tenho ideia para onde ou para quem ele levava a comida.
Faltavam cinco quilômetros até La Mesa. Berducedo estava deserta e meu caminho era por uma rua estreita separando duas casas. Dessa vez um pastor alemão me encontrou. Criei a confiança de dias anteriores e avancei imaginando que ele deveria estar acostumado aos peregrinos. O bicho ergueu-se feroz e, latindo, veio em minha direção. Fiquei sem opção, sem saber o que fazer. Por sorte um vizinho veio em meu socorro, gritou com o cão que se recolheu até o alto da escada da morada. Fui acompanhado pelo meu anjo salvador, orientando a minha passagem pelas propriedades. Pediu que eu tivesse cuidado com os cães. Isso colocou medo para qualquer outro latido.
Tudo que eu desejei, a partir daquele momento, foi ter uma lasquinha da amoreira de São Francisco de Assis, guardada no bolso da minha bermuda.