MOSAICO SANTA SEDE 2020
Guardiões da memória
Dora Almeida
Lembranças da infância nos acompanham sempre. A vida toda. Família, escola, brincadeiras, tudo fica guardado em nossa memória. Dizem até que, quando envelhecemos, os acontecimentos de tempos idos são mais lembrados que os recentes.
Uma de minhas lembranças mais antigas são os livros infantis. Não há como esquecer as histórias clássicas, Branca de Neve, O gato de botas, que ainda hoje fazem a alegria das crianças. A coleção Os Mais Belos Contos de Fadas Franceses, Italianos, Tchecos (custei a descobrir o que significava essa palavra). E os volumes do Mundo da Criança, que minha mãe trazia da escola onde trabalhava. Há algum tempo comprei um exemplar do João Felpudo, no seu centésimo aniversário de criação. As ilustrações eram as mesmas, mas a tradução era diferente, o que me decepcionou um pouco, já que algumas das historinhas eu sabia de cor.
Os livros de aventuras de Tarzan, o Magnífico, as aventuras de Simbad, o Marujo. Sem esquecer os quadrinhos do Flash Gordon, o Flasgordon, o Popeye , que eu lia Popéie e tantos outros.
Os primeiros romances, os livros do Érico Veríssimo. Quando o vento zune na minha janela, como não lembrar da Maria Valéria – noite de vento, noite dos mortos – ou de Heathclift e Catherine, no Morro dos Ventos Uivantes? Ou ainda de Scarlet O’Hara e Rhett Butler, de E o Vento Levou, o preferido de minha mãe?
Os livros de Ian Fleming, que me apresentaram a James Bond, espião do Serviço Secreto de Sua Majestade, bem antes dos filmes. E o Hemingway, então! Por quem os sinos dobram?, onde ele cita o poeta John Donne – A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte do gênero humano. Não me perguntes por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.
Hoje percebo que a palavra escrita, os livros que li, seus personagens, são os guardiões das minhas memórias. Doces memórias, que me levaram, na velhice, a participar de Oficinas Literárias, a me aventurar em leituras para mim um pouco mais difíceis, como Guimarães Rosa, que estou lendo agora. Quem sabe me atrevo nos outros volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, que só li dois?
Aprendi a ler os cronistas. Fiquei fascinada com Antônio Maria, Paulo Mendes Campos, Veríssimo, Rubem Braga. Hoje me encantam os textos do nosso Rubem, o Penz, e dos cronistas meus colegas de mesa. E me aventuro também na escrita, empunhando um lápis, contando histórias, algumas vividas, outras inventadas, imaginadas. Que são também memórias de alguém. E de certa maneira, também serão minhas.
E sabe? Navegar é preciso. Exige precisão. Viver não é preciso. Vivemos ao sabor dos acontecimentos. Com as nossas lembranças, de tempos idos, e as de agora, que o lápis vai ajudando a guardar.