Resistência
Ananyr Porto Fajardo
Mesmo que não devolva minha voz, vou seguir escrevendo com barro no cimento lascado do muro, esmalte rubro no vitral da igreja, batom no espelho da escola; a giz na laje, com hidrocor na palma da mão, spray na porta do prefeito, cal na grama do parque, à faca na mesa do bar e a canivete na casca da árvore, com a unha na lousa furada por balas, ao arrepio da vida.
Continuarei a segredar ao telefone, sussurrar ao pé do ouvido, inventar códigos. Convidar para cafés imaginários, criar termos, reatualizar sentidos. Buscar pares e ímpares, estudar outras línguas, recusar o silêncio. Rascunhar em garatujas, aos trancos e barrancos.
Rabiscar com tinta invisível, gastar os dedos em um teclado antigo, trocar mensagens com um avatar. Usar dialetos raros e sotaques inusitados, filiar-me a tribos de cá e de lá. Aprender língua de sinais, a assoviar, a estalar os dedos.
Bater panela, trocar olhares cúmplices, votar. Brincar de telefone-sem-fio e falar na língua do P. Riscar a areia da praia cada vez que a maré recuar.
Esquecerei bilhetes em guardanapos, mensagens criptografadas, garranchos no papel de embrulho. Largarei panfletos na caixa do correio, usarei pseudônimo, escreverei nas entrelinhas do jornal do bairro. Legarei um diário secreto aos filhos que não conheci.
Não importa se for com um toco de lápis, uma caneta que vaza ou sinal de fumaça no céu. O que vale é me fazer escutar, me deixar conhecer pelo outro, dar voz ao meu pensamento, inspirar o ar que nos agracia.
De máscara ou de burca, existir.