Sem fôlego
Ronaldo Lucena
Tantas vezes imaginei como seria quando acabassem esses nossos dias. Muita vida juntos, lado a lado, tentando respeitar a individualidade nos espaços. Sei do meu papel de opressor em cena, falando do alto, lugar onde sempre me coloquei em nossa relação. O malvado que bate e afaga, xinga e exige a fidelidade. Cada coisa tem seu lugar certo para ser feito. Nada nunca me negaste.
Tantas últimas noites calei tua boca com truculência, fiz engolir o choro, prolongar o olhar de não entendimento. Te coloquei no teu canto, tapei tua luz já rala pelo cristalino opaco. Choravas no nada e eu fingi não te compreender. Madrugadas frias e intermináveis.
Outras tantas tardes te carreguei nos braços, fartei a tua boca até aliviar minhas carências. Entreguei minhas tristezas, todas as angústias e o mais profundo das depressões. E ruminaste toda a maldade para mim. Por mim.
Outros dias te dei o cárcere e te transportei no tempo e pelos espaços. Te levei para tantos longes de casa. E foste calado, trancado, entupido o corpo de todos os temores do possível abandono. Só querias voltar para teus trapos. Esfreguei o fedor da tua pele, o calcáreo dos dentes, a lama das unhas. Te fiz lamber o excremento dos dias.
Outras manhãs fugiste de nossa casa, abandonando todo esse amor que te dei. E ouviste calado todas as minhas palavras duras, filtradas pela grade dos portões que nos separaram, sobre o basalto lavado de chuva. Os olhos de perdão que derretem todos os cadeados.
Noutro dia finalmente te perdi. Fugiste de mim na paralisia das pernas que já eram rengas. Na falta da sensibilidade dos teus ossos que doíam em mim. Na inércia de minha mão em tua fronte.
Uma agulha perfurou nossas veias na tua coxa. O líquido maldito foi entrando em teu cansado e maltratado corpo. Eu por um instante quis acabar com tudo, quebrar o êmbolo que escorregava na seringa e injetar o antídoto. Eu não tinha nenhum, nenhum, nenhum direito. Não nada nunca. E te perdi no meu desespero.