Iara Tonidantel em foto de Iara Tonidantel

Armadilhas

Iara Tonidandel

Seja delicada. Não fale alto. Ande na ponta dos pés. Faça-se discreta. Saia acompanhada. Não diga palavrão. Cuide dos outros. Não engorde. Chore escondida. Ame incondicionalmente. Torne-se dona da cozinha. Fique calada durante o sexo. Mantenha seus dragões escondidos. Escolha uma profissão feminina. Mantenha sua libido controlada. Evite questionar o status quo de gêneros. Exerça compreensão com a natureza masculina. Aceite a maternidade como destino. Esteja sempre depilada. Use roupas de acordo com sua idade. Aprenda a caminhar com sapato de salto. Beba socialmente. Evite demonstrações de afeto em público. Escolha atividades físicas inerentes à mulher. Não busque autoconhecimento. Tampouco muito conhecimento.
Pense somente o necessário para atender o descrito. Criticidade é coisa de homem.

Por pouco essa voz emanada do espelho quase a hipnotiza. Estilhaçou ele na parede.

Acordou.

– Puta que pariu! Atrasada!

Colocou rapidamente o tênis. Pomada nas tatuagens recentemente gravadas na pele. Abriu os watts para verificar se havia mensagens. Sai para correr.

Antes, lembra do pesadelo, grava:

Sou feita vento nordeste que levanta a areia da praia. Me desafio a todo momento. Faço o que quero e quando quero. Falo alto e apressado. Dou gargalhadas com os olhos e com a alma. Organizada para não perder tempo. Amo minha prole tanto quanto meu trabalho. Aliás, somente o segundo é de minha propriedade. Já me perdi em algumas estradas e, de fato, nelas me encontrei. Adoro minhas botinas. Preciso respirar a floresta seguidamente. Meus joelhos têm cicatrizes de todas as rodas que já me derrubaram. Levantei-me e continuo a usá-las. Adoro dias e noites de lascívia. Devoro livros de qualquer natureza. Desarmo, diariamente, as armadilhas que colocaram no meu destino. Dona da minha existência. Dona do castelo e dos dragões.

Dona dessa porra toda.

Corro.


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