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Altino Mayrink
Volto pra casa sempre bem tarde da noite. As obrigações do dia me mantém em vigília por muito tempo até conciliar o sono. A cama, amiga, demora a abraçar-me com suas suaves mãos. Morfeu não se apresenta há tempos.
No trem do meu retorno tardio, as pessoas são sempre iguais. Os mesmos corpos, os mesmos rostos, as roupas que se repetem em mínimas transgressões. Os cochilos se sucedem. Meus pensamentos não me deixam acompanhar àqueles que se entregam até a estação necessária e cotidiana.
Vez por outra acontece algum imprevisto e pessoas se levantam em disparada para não perder o local de desembarque. Normalmente vitimadas pelos excelentes cochilos do cansaço laboral. Isso e outras peripécias criadas com o desarmar dos descansos são as pequenas variações do mesmo tema diário. E, em pequenas doses, me distraio com um sorriso lateral e a face em festa.
Hoje foi diferente. Havia uma companhia do outro lado do vagão que também nãos estava para descansar. Vinha de um momento de labor, Arlequim da vida, já se recolhendo para a morada segura e uma possível Colombina esposa que o esperaria ansiosa. Seu olhar, embora pintado de tristeza, trazia uma satisfação que iluminava seu rosto. A postura segura e altiva transformava o ponto em que estava em um lugar brilhante, contrastando com a sombria expressão de todos no vagão. Uma grata surpresa.
Desci onde tinha que desembarcar e sua presença ficou comigo, embora ele tenha seguido o caminho. Onde foi, não sei. Qual era sua vida diariamente? Seria sua máscara seu ganha-pão? Conjecturas, apenas. Só sei que, por alguns momentos daquela viagem, minha vida foi brindada com um sentimento de esperança. Uma vida que pode ser vivida, sim.
Ainda há uma sequência de presentes a trilhar até o dia em que ficaremos em paz.