Nara Accorsi em foto de Lia Zanini

Guardião

Nara Accorsi

Gustavo passa correndo pela sala. A mala que carrega nas mãos bate contra a parede. Num ímpeto, abre a porta fechando-a num estrondo. Anelise vem atrás, de camisola, pés descalços, descendo as escadas aos gritos. Chega até a saída e com as mãos em punhos, desaba, ouvindo os passos do marido atravessar o jardim, o sonido do alarme do carro e o acelerar, chispando os pneus. Em desespero, ela retorna. Sobe trôpega os degraus e se atira na cama.

Black, que brinca na sala com a bolinha verde, tudo vê. Olha Gustavo correndo, apressado e ouve o barulho na porta. Também vê quando Anelise cai no chão. Perde o interesse pelo brinquedo. Larga a bola e persegue a dona, esquivo, arisco, se infiltrando pelos cantos, até chegar ao quarto. Da porta, espia as roupas no chão. Orelhas em pé, em leve tremor. É preciso controle; aguardar o momento para se achegar. Os soluços vindos em ondas, ora desesperados, ora em gemidos, vão se acalmando e Black vê que, agora sim, pode avançar. Pisa leve, uma pata depois outra, e outra; tudo muito lento. Desvia de algum objeto, sobe no travesseiro que está sobre o tapete e num impulso pula sobre o edredom, a maciez, a seda. Os cabelos de Anelise em desalinho, espalhados, muito negros. Chega mais perto, ronrona e senta receoso, alerta. Afinal não é um momento qualquer. Aos poucos vai relaxando as patas, se estica e se prepara para deitar − a cabeça, sempre em pé, todo ouvidos. Quando a respiração de Anelise se normaliza tomada pelo sono, Black aconchega-se. Um miado suave, queixoso. Descansa a cabeça entre as patas e fica ali, guardião.


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