Crônica Verdejar

Verdejar 

Autora: Graziela Algarve Cardoch Valdez

Não perceberam quando a primeira planta, uma trepadeira, nasceu no canto mais escondido do banheiro. Foi só passado certo tempo, quando a brinco-de-princesa contava com quatro palmos e delicadas flores magenta, que eles notaram algo colorido ali.

Mais ou menos na mesma época, o carpete da sala, de um verde já desbotado pelo tempo, recuperou a cor. Então as rosetas – era época de rosetas – começaram a espetar os pés e eles se deram conta de que o carpete estava mais alto, mais fresco e mais verde do que de costume. Era grama, agora.

A casa inteira se transformava. O abajur da sala, quando tocado, curvava-se gentilmente, como ramo que se afasta com a mão – e a luz vagueava pelo aposento de um jeito que o velho abajur de metal jamais poderia fazer. Guabirobas carregadas de flores brancas e alecrim nasciam nos cantos mais escondidos da casa, e aqui e ali pequenas flores, dessas que são vistas nos campos, coloriam os aposentos.

Os sons da casa, outrora conversa, telefone, água borbulhando na chaleira, foram, aos poucos, substituídos pelo zumbido de abelhas, canto dos pássaros, coaxar de sapos…

Sem que percebessem de imediato, plantas ergueram-se no lugar das paredes, de modo que era como se se mantivessem as divisórias da casa e as paredes externas, só que agora verdes: em vez de cimento e tijolos, galhos e folhas num emaranhado vivo, denso.

Num e noutro lugar, surgiram ipês, primavera e sibipiruna, já apontando suas flores amarelas. Embaixo da pia da cozinha e pelo banheiro todo, corticeira-do-banhado, com flores lindíssimas, de um vermelho vivo.

Exceto pelas rosetas e sapos (ela odiava sapos), gostaram de ter a casa mais colorida e da grama fresca: sem que soubessem como, estava sempre coberta de orvalho pela manhã.

Ela deslumbrava-se com a dança colorida das borboletas, o perfume das flores e o brilho dos vagalumes. Ele colhia doces amoras pendentes do lustre da sala, pitangas ao lado do guarda-roupa e jabuticabas no hall de entrada. Vez por outra, gostava de pular imitando Tarzan em cima do sofá, só para vê-la sorrir. Sentia-se vivo e renovado.

Assim como o início do verde na casa foi discreto, o casal não percebeu quando o telhado começou a esmaecer e, por estranho que possa soar, não foi com raios de sol, mas com uma noite de lua cheia que viram que o teto estava quase completamente transparente. Duas semanas depois o teto já não existia e eles contemplavam estrelas nas noites e eram fustigados pelo sol durante os dias.

Menos de seis meses depois de terem visto aquela primeira trepadeira no canto do banheiro, o casal já dormia em uma clareira, em cima de folhagens secas e tendo o céu por cobertura. Foi quando tudo aconteceu:

O dedo mínimo dela amadeirou-se. Em dois dias, tornou-se rijo, pintado de veios escuros. Tomado pelo medo, ele sugeriu cortar-lhe o dedo. Era só um. E dedo mínimo. Não faria tanta falta. Melhor cortá-lo já, antes que aquilo se espalhasse aos outros dedos ou à mão toda.

Ela pediu uma noite para pensar. Dormiu mal. Sono interrompido. Agitado. O céu estrelado não confortou seus medos. Acordou com imensas olheiras e o rosto instantaneamente envelhecido como quem perde um ente amado. Buscou a mão dele sobre as folhas e tocou-a suavemente. Ele tomou-lhe a mão e constatou que agora eram três os dedos afetados. Quis acarinhá-la com um beijo mas ela interrompeu o movimento com horror: os cabelos! Os cabelos dele! Eram mais folhas do que fios, folhas nascendo do couro cabeludo, agora atravessado por veias largas e esverdeadas que alimentavam a cabeleira.

Choraram. Choraram o dia inteiro.

Ao final do dia, as duas mãos, o nariz e uma das pernas dela eram mais madeira do que carne, o mesmo processo começando com ele, cujos dedos de uma das mãos enrijeciam-se em linda madeira escura. Dos pés, pequenas raízes começavam a cravar-se no chão.

As folhas escuras multipartidas dela, as folhas compridas de um verde mais claro dele, em uma combinação bonita, perfeita até, na conjunção das copas entrelaçadas que já se estendia alto, bem acima do que fora uma vez o teto da casa. Ela uma canafístula imensa, carregada de flores amarelas e já deitando um tapete dourado no chão; ele uma exuberante corticeira da serra, exibindo seus cachos de flores vermelhas.

Ela tentou falar que nunca o vira mais lindo. Mas não soube se o som que ouviu foi sua voz ou o suave farfalhar das folhas balançadas pelo vento.


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