Cicatrizes
Ângela Puccinelli
Ele me disse com a maior naturalidade. Foi somando meus problemas, como se tudo
na vida fosse dinheiro. Pior que o que ele falou poderia mesmo ser resolvido com
dinheiro. Cirurgia de minha mãe = US$ 5,000.00 + quitação da nossa casa = US$ 80,000.00
+ viagem de férias para a Disney que a família tanto sonha = US$ 30,000.00 + dívidas de
cartões de crédito e outros = US$ 40,000.00 + faculdade dos dois filhos que ainda estão
no fundamental = US$ 800,000.00 + despesas mensais por 15 anos = US$ 1.000,000.00.
Arredondando, US$ 2.000,000.00. Ufa! Dois milhões de dólares americanos.
Sim, tudo em dólares. Dinheiro vivo.
E todos os meus problemas atuais e futuros estariam resolvidos. Pelo menos tudo o
que o dinheiro compra. Chegou a dar um nervoso só de pensar.
Ele me deu três dias para decidir.
Sacanagem. Decidir o futuro de minha família em apenas três dias.
Por dois dias e meio pensei sozinho. Suei. Não dormi. Comi demais. Evitei todo tipo de
conversa não trivial. Difícil foi não dizer para minha mulher o que estava acontecendo.
A cada meia hora ela me falava que eu estava estranho. Estranho? Estava apavorado.
Minha consciência, como ficaria? Tinha que honrar minhas cicatrizes. Não cheguei
aqui por nada. Foi muita luta, muita dor, muito desapego de todas as outras coisas boas
da vida. Meu falecido pai, o que faria? Que exemplo deixaria para meus filhos?
Isto não seria apenas uma decisão. Seria uma mudança de modo de ver a vida.
De ser ou não ser ético. Mais do que isso até. Que loucura!
Agora estou aqui e tenho que dizer o que vou fazer.
Ai, meu deus! Ele chegou.
Ok! Está decidido. Eu entrego a luta. Mas após o terceiro round, pra não dar na vista.