Nara Accorsi em foto de Mau Saldanha

Cavalo de ferro

Nara Accorsi

Encontrei Bento sentado num banco da praça. Homem rude, voz rouca, rugas profundas forjadas pelo sol. Chapéu de aba larga, típico gaúcho desgarrado que vem para a cidade. Parte dele ainda está no campo: suas raízes e lembranças; e outra, luta para se adaptar ao ritmo da capital.

Sigo os gestos amplos e calculados com que prepara o cigarro. Abre a palha, que estica com destreza. Coloca o fumo, aperta bem, envolve e cola com saliva. Está pronto. Confere o pequeno rolo, coloca no beiço e acende. Uma baforada, e o olhar se perde no céu como se buscasse por algo. Se demora no silêncio, e trás de lá mais um causo que relata com entusiasmo como se contasse para uma multidão.

Seu caminhar nunca pisou as mesmas trilhas. Um aventureiro. Bento viveu muitas vidas e agora na velhice, vem em busca de algo melhor. Não era o que sonhara. Pensou que terminaria seus dias de olho na plantação, conferindo a colheita. A vida do campo ainda pulsa. No amplo espaço verde, por vezes florido, encontra a algazarra dos pássaros disputando galhos, e nos cães vadios, amigos com os quais divide o pedaço de pão. Fica ali até o sol se esconder, apreciando aquele novo mundo de pessoas iguais a ele, mas ao mesmo tempo tão diferentes. Crianças passam nos carrinhos, o piá chuta a bola, o velho de andar trôpego.

Veio do interior fugindo da fome e do desemprego. Em outros tempos teve casa, roça, cavalo e mulher. Mas a desgraça aconteceu. Foi num dia de tormenta, quase noite, Bento cavalgava arrebanhando o gado, quando num baque violento Ventania caiu por terra numa armadilha de javali montada no caminho. O cavalo se contorceu no desespero da perna quebrada.  Não teve outro jeito. Bento sacou da espingarda livrando-o da dor. E assim, a companhia de muitos anos, que carregou no lombo Rosinha, ainda menina, ao primeiro baile e no dia do casório; o parceiro de invernadas que também levou, a passo, o corpo do velho pai quando ele morreu no meio do milharal, partiu. Rosinha foi embora com Agenor, a roça arruinada, e Ventania morto, nada mais o segurava no campo.

Chegou na capital sem cavalo. Hoje tem uma Monark, a bicicleta de segunda mão, que ironicamente chama de cavalo de ferro. Não tem o mesmo garbo do animal, nem o mesmo cheiro do pelo suado e úmido. Essas são coisas que ficaram no passado.

Bento termina sua história, estende os pés nus enfiados em chinelos de borracha, e lembra das botas de couro, engraxadas aos domingos para a missa. Desvia o rosto e depois de mais uma baforada, arruma o chapéu e monta na bicicleta. Até amanhã.


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