1 Carla Penz

Pianos silenciados

Desumanidade. Negação. Invisibilidade do outro. Gritos silenciados. Discurso cego e cruel. E tantas outras constatações assustadoras me fazem questionar se o homem é realmente capaz de tamanhas atrocidades, após assistir ao filme Zona de Interesse, dirigido pelo cineasta Jonathan Glazer.  O premiado longa-metragem britânico, conta a história da família do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss e esposa Hedwig. O casal, com cinco filhos, vivia numa casa, com jardim encantador e piscina, ao lado do campo de concentração.

Naquele espaço bucólico levam uma vida normal, recebem amigos, comemoram aniversários. Cuidam das flores,  contam histórias  para os filhos, riem, brincam. Hedwig encaminha as crianças para a escola, comanda os afazeres domésticos, pede ao marido para levá-la a um Spa, como se nada estivesse acontecendo ao lado. Na visita da mãe, ostenta com orgulho o conforto, a beleza do lar e o título de “rainha de Auschwitz”. O filme retrata a normalidade perturbadora daquelas pessoas, vivendo alheias aos sons dos gritos e tiros, à fumaça e cheiro das câmaras de gaseificação e cremação em massa do outro lado do muro. Nada interfere na rotina doméstica do lado de cá da sebe.  Nem mesmo quando Rudolf está nadando com os filhos no rio, e se depara com restos de corpos e cinzas descendo a correnteza. Tudo que faz é retirar as crianças da água,  que em em casa são banhadas com urgência e sofreguidão. Quando o marido é transferido do local, a esposa recusa-se a acompanhá-lo em nome da felicidade ali conquistada pela família.

No filme, chama a atenção também a menina da bicicleta, numa cena em preto-e-branco, que esconde maçãs no campo para serem achadas pelos prisioneiros famintos. Segundo o cineasta, trata-se de uma menina polonesa da resistência e a intenção foi representar a força do bem. Parece ser a mesma jovem que, ao piano, toca as teclas, enquanto as legendas são de esperança: “raios de sol/radiantes e quentes/corpos humanos/jovens e velhos/e nós que estamos presos aqui/nossos corações ainda não estão frios/alma em chamas/como o sol ardente/ rasgando/rompendo/através da sua dor/pois logo veremos/aquela bandeira tremulante/a bandeira da liberdade/que ainda está por vir. Chega de spoiler. Fica o convite para assistir. E sentir. E indignar-se com os sons, com a alienação, com a crueldade.

Ao assistir o filme, tive a impressão de que, apesar de tantas obras cinematográficas, literárias e musicais sobre os horrores dos campos de concentração, a humanidade ainda não aprendeu. Nós não aprendemos. Involuímos em alguns aspectos. O filme apresenta em alguns minutos a tela em preto, em branco, em vermelho sangue, forçando a reflexão e a conciência. Mesmo retratando a banalização do mal da 2ª Guerra, a película tem muito do presente: a  terra geme e queima; a fumaça cobre com véu cinza o céu e o sol. Seguimos com os afazeres cotidianos, tossindo e adoecendo. Os drones borrifam veneno na calada da noite para aumentar a produção de  commodities e de morte. Os rios estão secando ou se arrastam cansados, contaminados com detritos de ganância e ambição. As árvores, todos os dias, são arrancadas na cidade. Ao invés de folhas e sombra, cimento e concreto. Sem árvores, não haverá pianos. Não haverá florescência. Só silêncio (des)umano. E o homem segue vivendo (até quando?!), alheio e negacionista ao genocídio ambiental, à desigualdade, à fome, à discriminação. Acordai os ouvidos, a consciência, as atitudes! Antes que os pianos sejam definitivamente silenciados.



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