Existem termos, expressões, cujos significados nos parecem quase eternos. Por exemplo, até dois dias atrás, consolo, em meu léxico, reportava a dar conforto, apoio emocional a alguém que está enfrentando uma situação difícil. O que fez essa palavra, repentinamente, me apresentar denotação diferente? A leitura. Não da palavra, mas do livro – Herdeiras do Mar. Um soco. Na testa. No estômago. Um chute nas canelas e no peito.
Mulheres de consolo, título definido no Japão para meninas e mulheres coreanas (a maioria) que, ao serem retiradas de seus lares, davam “conforto” aos japoneses enviados para as trincheiras e campos de batalha, na segunda guerra mundial (em letra minúscula que é o que cabe a esse genocídio horrendo). O tal “consolo” dado aos soldados, quando lhes era negado, acontecia de forma compulsória, ou seja, por estupro.
Lendo esse livro, percebi quão pouco sabia sobre a Coréia, sua divisão, suas guerras e conflitos. Então, curiosa que sou, fui em busca de informações históricas sobre essa nação, descobrindo que os coreanos, tal qual os vietnamitas, não instalaram nenhuma guerra, mas sim, foram alvo de países que lutavam por ampliação de territórios e poder. Não vou aqui falar sobre isso, pois a história está repleta de narrativas, informações e dados sobre esses massacres. Sobre o que falo, então? Sobre o meu ato de ler e suas implicações.
A leitura não me proporciona somente o conhecimento de uma nova história, de um diferente estilo de escrita. Pode até ser clichê, mas afirmo que ela amplia meu dicionário, minha interpretação do mundo, dos sentimentos, das emoções, muda significados. Ler cria escadas, até então inexistentes, cujos degraus, sou levada a galgar, mesmo sem saber se o que irei encontrar no topo terá a energia investida recompensada. E, quanto mais eu leio mais quero ler, (re)conhecer as paisagens descritas, entender os dilemas e as tragédias dos personagens, rir com as cenas por vezes desconcertantes, apresentadas por seus escritores. Descobrir quem roubou, quem matou, quem dedurou, e o porquê, em enredos policiais. Um vício. E por falar nisso, lembrei de um episódio.
Estávamos em férias na praia, com amigos e, durante uma das tardes, enquanto o preparo do almo-janta dava as caras na casa, saí para caminhar pelo centrinho. Ao retornar, com as duas mãos ocupadas por sacolas, uma de minhas amigas, com uma lata de cerveja em punho, corre a abrir o portão, dizendo não ter palavras para agradecer pois a bebida estava findando. Sorrindo, informo que minha carga não é alcoólica, e sim, literária. Ela, a sorrir, fecha o portão e diz que isso é mais do que vício, é uma doença da qual estou infectada e, gostar mais de Cervantes do que de cevada é preocupação certa, então, melhor eu ir até um médico ou centro de reabilitação, um LA (Leitores Anônimos). Claro que depois da piada, abriu novamente o portão.
Pertenço a um país em que o número de pessoas que leem é ínfimo. Lastimo, cotidianamente, essa situação. Mas, depois de conhecer a história das coreanas, não vou me consolar quando alguém me disser que surgiram novos grupos de leitores. Esse termo risquei do meu vocabulário, substituindo-o pela palavra acalentar. Por enquanto.
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