Sentada no corredor, ao lado de dois senhores muito educados, irmãos em viagem, segundo me contaram, esperava por uma viagem tranquila. Nem bem o avião terminou sua subida, ambos adormeceram. E roncaram como lenhadores das montanhas. Cansados, pensei, sem sequer cogitar cutucá-los. Isolei meus ouvidos com os fones, ouvindo Belchior. Era minha primeira viagem sozinha, e fazia um check list mental: as bagagens seguem direto para Cuiabá, o Davi vai me buscar no aeroporto, visito o Palácio da Instrução e, em alguns dias, verei a Júlia. Até aí, tudo bem.
O problema foi quando o pensamento tomou rumo próprio, me causando palpitações: será que eu desliguei o ferro de passar roupa? Será que o Mateus ficará bem sem mim, por quase duas semanas? Ah, eu não deveria ter vindo! Bobagem, bobagem, digo a mim mesma. De repente, a cabeça do homem ao meu lado tomba sobre meu ombro, e eu tento me esquivar. A comissária percebe minha aflição e me oferece outro lugar, mais à frente, na janela. Aceito sem hesitar. Contemplo a vastidão azul, as nuvens formando uma cordilheira branca. Cumulus nimbus peroladas, imensas.
Sorrio, ao lembrar do Wilson, meu marido. Conhecia tudo de nuvens. Ele era piloto, sabe, desde os dezesseis anos de idade. Não tinha ainda Carteira de Habilitação, mas já possuía brevê de piloto privado. Aos dezessete, de piloto comercial. Os colegas todos, seduzidos pela ideia de conhecer o mundo, seguiram para as linhas aéreas. Ele preferiu a aviação agrícola, uma vida mais simples e mais livre. Assim como conhecia o céu e as nuvens, sabia de lavouras. E morria de medo de voar. As escalas em Congonhas o faziam ter pesadelos.
Na nossa última viagem juntos, aterrissamos no Salgado Filho à noite, um pouso que colocou à prova o coração dos passageiros.
– Furou a pista.
Desviei o rosto da janela, atônita, e o vi a olhar para mim, um sorriso de lado, reprovando a falta de perícia do piloto. Já sofrendo com uma afasia, consequência do câncer no cérebro, que, no fim, lhe roubou a voz e a razão, ele falava cada vez menos, e quando o fazia, eram palavras desconexas. Foi surpreendente ouvi-lo falar e, mais que isso, comunicar um pensamento. Falei qualquer coisa, provocando, mas a faísca havia ido embora, a mudez instalada novamente.
O serviço de bordo oferece lanche, um suco ou um café. Mastigo os salgadinhos e a saudade. Depois de quase três anos de luta e aflição, era a primeira vez que levava a vida para passear, tentando reencontrar a leveza que a Poliana em mim tanto aprecia. Olho para o guardanapo, antes de amassá-lo e jogá-lo no lixo: “Estive nas nuvens e lembrei de você”, está escrito, em letras cor de laranja, da cor do pôr-do-sol do Cerrado, lugar de tantos pousos e decolagens do Ipanema prefixo PP UPX.
O piloto avisa que em breve pousaremos, e eu me deixo embalar pela voz do cantor cearense: “Foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez a tua mão”. Versos que o Wilson cantava, quando apertava firmemente minha mão e fechava os olhos, se benzendo, enquanto o trem de pouso descia, até as rodas beijarem o asfalto.