Era um dia especial, um dia de decisão. Entrei no ônibus para ir a minha sessão eleitoral. Já não moro mais naquele sofisticado bairro de Porto Alegre, mas, embora pudesse, nunca quis mudar o local de votação.
Voto no clube onde pratiquei esportes durante a infância. Por isso, votar também é uma oportunidade de visitar uma época contraditória de minha vida, pois, minha sessão é dentro da sala onde praticava ginástica olímpica.
Naquela sala que descobri uma sensação muito especial: voar. Nas barras assimétricas, a partir de um salto inicial, algo fantástico sucedia, algo que eu nunca soube explicar como fazia. Eu voava por alguns segundos e, sem saber como, aterrizava com os dois pés no chão e os bracinhos magros esticados. Tinha muito medo de perder o equilíbrio e aquelas barras me davam notícias da perda da gravidade, da imaginação e dos devaneios. Mas, logo depois eu era tragada pela realidade e lá estava a treinadora, cuspindo fogo e ofensas quando eu tinha vertigem sobre a trave. Aquela fila de meninas esperando a vez de subir e fazer tudo o que praticaram no chão, agora encima daquele longo pedaço de madeira. Eu mudava de cor conforme me aproximava e as risadas e piadinhas iam entrando em minha cabeça.
Estava no ônibus e vi algo caído em um vão entre os bancos. Uma pequena foto, dessas antigas que eram utilizadas em documentos. Peguei-a nas mãos. Era uma imagem amarelada e manchada. Nela vi um homem preto, de ombros cansados e olhar sem esperança. Nela vi resignação e impotência.
A foto me provocou uma viagem, uma espécie de devaneio, e fui parar em minhas memórias de Joanesburgo, quando visitei o Museu do Apartheid. Lá vi muitas fotinhos deste tipo. Foram pessoas presas pelo regime de segregação racial. Houve um fluxo de imagens e fui transportada para Auschwitz, mas algo se desdobrou e vi filas de jovens amedrontados e esfomeados nas Malvinas. Levantei em automático, segurando a fotinho. Precisava descer. A porta do ônibus se abriu e estava em Hiroshima, em frente ao memorial da paz. Desci diante das ruinas do Domo de Gembaku, onde pude ver a sombra de duas pessoas no chão. Elas foram pulverizadas com a explosão da bomba.
Meu Deus, essa fotinho é um rolo compressor!
Cheguei à sessão. Nunca peguei fila para votar, mas neste dia estava diferente. Apalpei minha colinha no bolso superior da camisa, verifiquei minha identidade e título eleitor e colocando a foto de meu amigo junto deles. Fiquei observando as pessoas, ouvindo suas conversas, enquanto esperava minha vez.
Foi neste momento que me dei conta que parecia que estava na Europa. Em cerca de cem pessoas esperando, não havia nenhum preto. Não é possível! Como eu não vi isso antes, depois de toda uma vida votando aqui. A única pessoa preta naquela sessão estava em meu peito, no bolso junto a meu coração.
Em meu bolso, junto ao meu coração, tinha meu título eleitoral, minha identidade e a foto de um homem preto. Um homem que me convidou a pensar.
Em meu coração, um sonho, uma mania de utopia, uma vontade de chorar.