Não existe sapato perdido

 A noite da cidade é escura,exceto pelo brilho dos mísseis/silenciosa, exceto pelo som dos bombardeios/assustadora, exceto pela garantia das súplicas.

Heba Abu Nada, 08.10.2023

Onde estão os sapatos de Heba Abu? Entre tantos, a perder de vista, espalhados feito vestígios de existências soterradas; presenças fantasmagóricas, relicários desesperados de quem busca corpos ausentes.

Como a poeta palestina Heba Abu, jovens, mulheres e crianças são as principais vítimas do terror institucionalizado pelo Estado de Israel.

Além dos milhões de exilados, os que resistem são prisioneiros em seu próprio país. Espremidos em dois grandes campos de concentração – Gaza e Cisjordânia – esse escandaloso apartheid   conta com o cinismo diplomático tão característico da ONU, aliado à indignação seletiva da grande imprensa mundial.

A história da Palestina desde início do século XX – e de forma mais dramática após a II Guerra Mundial – é a da invisibilização, produzindo ausências meticulosamente organizadas. Nesse jogo perverso, em nome do povo judeu, do judaísmo e das vítimas do Holocausto, paradoxalmente foram construídas as bases para outro genocídio.

Nesse sentido se entende o por quê das faixas escritas com a frase “Não em nosso nome” – sempre levantadas por comunidades judaicas ao redor do mundo diante do extermínio racial perpetrado pelo Estado de Israel há mais de 70 anos contra o povo palestino.

Esse processo se gestou na virada do século XIX em que se combinavam o novo colonialismo europeu, uma forte crise econômica e onda de xenofobia antissemita principalmente na Europa Oriental. O recém criado movimento sionista (em referência ao monte Tzion, em hebraico) se valeu de uma série de mitos, sendo o de que a Palestina seria “uma terra sem povo para um povo sem terra” é exemplar do quanto esteve na gênese de Israel a ausência programada.

Assim, mal fundado Israel (1948) é criada em 1950 a Lei de Propriedades de Ausentes que, segundo dados do historiador judeu Ralph Schoenmam, permitiu a transferência de cerca de 90% das terras palestinas para colonos judeus.

Outro mito, uma versão de destino manifesto bíblico, tratou de se apropriar e adaptar textos sagrados do judaísmo para daí extrair novas verdades absolutas que justificam até hoje a empreitada colonialista. A fórmula teórica resultante espanta por seu parentesco com as bases do III Reich – o princípio do espaço vital – “Terra Prometida” e de superioridade racial – “povo escolhido”.  Obviamente depois do Holocausto uma justa reparação ao povo judeu era necessária mas os interesses geopolíticos da Nova Ordem Mundial tratou de transformá-la numa repetição histórica trágica e farsesca.

Para tanto, tornou-se fundamental invisibilizar totalmente os cerca de 1 milhão e 300 mil palestinos que restavam após cirúrgicas expulsões no período entreguerras. Nestes 70 anos, o povo palestino – muitas vezes traído, vítima de açōes que jogam contra sua causa – tem insistido em continuar lutando por sua existência, sempre e sempre, a cada morto reinventando a vida como nos textos de Heba Abu.

Onde estão seus poemas? Em toda parte, insistindo em existir; em toda fé que não é cega. Persistindo em meio aos escombros, a bandeira Palestina anuncia outro futuro possível, livre, laico e multiétnico.

 

 

A História oculta do sionismo – Ed. Sundermann, SP, 2008.


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