Do meu castelo, enxergo até a periferia. Imagino a vida não planejada e bem vivida, com todas as experiências que nunca tive.
São casinhas empilhadas, alicerçadas na especulação imobiliária e sustentadas na solidariedade.
Lá tem horta, bicho solto, sombra de figueira e cadeira de palha. Tem gente que passa as horas cuidando dos filhos da vizinhança e dos velhinhos no centro.
Identifico minha babá, o rapaz que lava meu carro, minha faxineira ao celular e até nosso vigia de folga. Percebo que se falam e trocam risadas inéditas.
Enxergo a fumaça do ônibus subindo a lomba com dificuldade e descendo com os freios guinchando. Nada demais, apenas um transporte coletivo que de público só tem o nome.
Também percebo um aglomerado de árvores em torno de um campinho de futebol onde meninos jogam e adultos assistem, sem brigas nem invasões.
Observo a cruz da igreja engajada nas lutas locais e a placa do posto de saúde da família que presta cuidados gratuitamente (eu só recebo receita e boleto do plano de saúde).
Penso no empacotador do supermercado e cujo nome nunca perguntei e na secretária do meu marido – ela ficou uma semana sem trabalhar no escritório quando um temporal destelhou sua casa. Lembro do meu garçom preferido no Moinhos, trabalhador em três bares e que formou dois filhos na faculdade.
Todos eles se conhecem e já choraram a perda de muitos filhos, mas seguem em frente. Li no jornal que temos uma geração de jovens mortos, mas não entendi a expressão “perfil sociodemográfico”.
No meu casarão mando eu, mas quem me comanda é a empregada com sua lista de compras semanais para mantê-lo limpo. Nem sei onde ela mora, só sei que às vezes se atrasa. Seu marido já veio muitas vezes para retocar a pintura e reformar a rede elétrica, os dois em um Passat 1985 meio cafona.
Sem eles, meu castelo desmoronaria.
muito bom!