Sobre a inexorabilidade
Rubem Penz
Ele era primo de um amigo meu de praia. Alto, magro, cabelos castanhos com corte normal – nem longo, nem rente. Curioso pela vida como todos nós, adolescentes convivendo num espaço de liberdade só possível nas férias e no litoral. Ele também tinha um irmão menor e, como nós, não deixava o irmão menor por perto – nossas conversas eram outras. Ele estava ficando cego.
Poucos anos antes eu havia conhecido na mesma praia a primeira pessoa surda da minha vida. Retorço os miolos e seu nome não vem. Deveria vir. Afinal, me apaixonei por ela. Paixão infantil, que é um pouco diferente das de adulto, mas, olhando em retrospectiva, já capaz de conter tudo o que sei do amor – uma vontade incomum de cuidar, proteger, acarinhar. Seus cabelos eram ondulados, castanho claros, curtos. Tinha enormes olhos entre o verde e o azul, lábios grossos, nariz delicado. Falava muito mal, mas falava. Sua família hospedou-se no hotel apenas uma vez. Nunca mais soube dela.
Entre um verão e o outro, ele deixou de jogar bola conosco. Seu rosto também mudou em virtude de vícios de postura – restava-lhe uma fresta de visão bem na lateral, impondo uma torção no pescoço acompanhada de uma quase careta. Ele perdeu a segurança no caminhar e ganhou uma densa melancolia. Revoltava-se contra a inexorabilidade de sua condição. Recordo muito bem de meu desconforto em ser incapaz de confortá-lo. Não sei se a nesga de foco que restava em seus olhos era suficiente para captar minha incompetente solidariedade muda. Sim, eu calava diante de sua revolta.
Ela permaneceu muitos anos como uma espécie de fada em minha memória. À época, imaginava como conseguiria dividir uma de minhas maiores paixões, a música, com sua condição auditiva. Conseguiríamos contornar nossas diferenças? Eu seria capaz de fazê-la feliz? Certo, mesmo, foi ela nunca ter visto meu olhar apaixonado. Duvido até que se lembre de mim.
E agora, ao notar um silêncio fotográfico, quando diante de um fio de foco, lembrei destas primeiras duas pessoas iguais a mim, de mim tão diferentes. Seria bom poder abraçá-las e dizer-lhes inesquecíveis. Em consolo, quem sabe, falar que, de lá para cá, conheci pessoas sem alma. E por elas, sim, apenas por elas, lamento.