Autor: Maria Amélia Mano
Amaciar a carne dura de segunda para a sexta. A semana era Ana e era Ana. Erros, muitos, um atrás do outro. Esquecera de todos, mas sabia que existiam e que o mundo é o que é por eles, os erros. Na janela da quitinete, a cortina de renda sem sentido e sem combinação. Na televisão, programa de viagem mostrando o Mar Morto. Não fazia sentido, Mar Morto, marmota! E muda para o canal rural: esterco, estrume, adubo. Mais uma tentativa: canal de igreja, templo e tempo perdido. Sente o destino chamar. Muitas vezes chamou e nunca foi. Ou foi pela metade ou por medo, ou por Ana. Ana, a namorada de infância. Larga a carne dura de segunda na mesa e o canal da tevê em música de louvor. Centro da cidade, desce pelo elevador, 12 andares. É carnaval e todos usam alguma fantasia. Um bloco de rua passa e canta Aurora. Arranjo, desarranjo, anjo jogando água nos passantes, passistas de algum desconhecido andar. Andar e andar, Aerovaldo assim é, só andar. Uma bailarina rodopia na calçada e um redemoinho de pétalas de rosas no chão tira Aerovaldo do transe, do porto, do cais, e veio o caos. Perguntas tantas. De onde vem as rosas? Samba enredo, desenredo, enredado entre os dedos, entre os dentes, entre as pernas, entre as pedras do chão colorido de confetes. Alguém chama seu nome do alto, não, do lado, bem perto. É Ana, a esposa de anos. Ela não pergunta sobre a carne de segunda, sobre a música de Jesus, sobre a porta aberta, a janela aberta, a vida aberta, esperando, sempre esperando. Nunca perguntou. Apenas mostra a saia colorida costurada a mão. Chita sofrida de lavagem em pedra de rio e secagem em cerca de arame farpado. Saia de sair em festa distante de tempo de interior, da casa do pai, de terra nas sandálias. Ana olha com olhar que sabe, sabe de tudo. Não luta, não chora, parece feliz, sempre feliz. Tanto tempo e ela não pergunta sobre a sede, sobre o desejo, sobre a cama, sobre a porteira aberta, a janela ainda aberta, a vida ainda aberta, ainda esperando. Nunca perguntou. Ana ajuda Aerovaldo, levanta o rosto, enxuga a lágrima, entrega a saia e sorri. Ana sempre sorri. Ele beija as mãos dela, a testa, a boca, a alma. Ana se despede e entra no prédio. Aerovaldo espera o bloco de carnaval fazer a volta na quadra. Quando pode, salta para o centro, para a roda, para a vida que escancara janelas e não quer mais esperar. Hoje é ensaio, saia de chita, batom vermelho. Amanhã, Aerovaldo sonha alto, terá vestido de noiva feito dos restos da cortina de renda da janela da quitinete, aquela sem sentido e sem combinação. E a cortina terá a rua inteira para voar. E Aerovaldo ergue os braços, e rebola o quadril, e dança no ar, e arranha o céu com as unhas pintadas de azul. Enquanto Ana, Ana, a esposa de sempre, atira pétalas de rosas lá do 12º andar.