1 Carla Penz

A nota sinistra

Depois do almoço, sentaram-se todos à varanda da casa de d. Noca, onde um vento ameno convidava à prosa. Alguns preferiram ocupar os degraus de madeira escura, parecendo meninos de pernas compridas. Fazia tempo que os primos não se reuniam todos de uma única vez. Conversa vai, conversa vem, Maria Clara lança uma bomba no meio daquele território pacífico:

– Encontraram o piano da Professora Esther.

As palavras que dançavam, alegres, emudeceram. Ninguém falava no piano da d. Esther desde que eram crianças. Sentado no último degrau, mordiscando um capim-cidreira, Francisco retesou o corpo e cerrou as mãos, com força. Sentiu faltar-lhe o ar, o peito, apertar-se. E os olhos de todos pousarem sobre ele. Não teve ânimo de erguer a cabeça. A voz de Maria Clara rasgou o silêncio:

– Vão demolir o Liceu Santo Agostinho. Estão retirando de lá tudo o que tem valor histórico, livros, quadros, troféus, essas coisas. O piano está naquela sala esquisita, no fim do corredor do terceiro andar, lembram? A gente chamava a sala de “morto”.

Na verdade, a sala funcionava como uma espécie de arquivo morto da escola, onde era guardado o que podia – e devia – ser esquecido, documentos, fotografias. Mas acabou virando apenas morto, porque a gurizada adora um mistério, e corria a lenda que lá dentro morava um zumbi.

– Então foi pra lá que levaram o piano – disse Francisco, a voz muita baixa. Abriu lentamente as mãos e acariciou os nós dos dedos, fazendo uma careta de dor. Aos nove anos, teve dificuldade com uma partitura e d. Esther, enfurecida, fechou a tampa do piano sobre suas mãos, com violência. Oito de seus dedos ficaram feridos, um deles, quebrado. Descobriu que também a tecla quebrara, num formato de meia-lua, um sorriso ao contrário, debochado, igual ao machucado desenhado em seu dedo. Pouco tempo depois do incidente, o piano desapareceu, e junto com ele, a professora Esther. Anos mais tarde, soube que, por onde ela andasse em busca de emprego como professora de piano, a história a perseguia, e ela acabou virando caixa de uma farmácia, até falecer.  

– Preciso ver esse piano.

– Chico, deixa disso. Já faz muito tempo.

Mas ele já estava de pé e começou a caminhar a passos largos até chegar à escola, com os primos em seu encalço. Subiu as escadas e, ao chegar ao terceiro andar, estancou. Pedro incentivou:

– Já chegamos até aqui, agora vai!

E ele foi. Abriu a porta e lá estava aquela coisa monstruosa. Levantou a tampa e viu surgir o teclado branco e preto, a tecla quebrada, o sorriso espelhado ainda ali. Sentiu os dedos formigarem, e um arrepio gelado percorreu sua espinha. Uma tecla do piano pressionou-se, como se tocada por um dedo invisível, e uma única nota sinistra ecoou pela sala.

Allegro, Francisco fechou a tampa, e o grito de D. Esther foi como música em seus ouvidos.     


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