Eu era uma menina pequena e magricela, irmã caçula de três guris dados a brincadeiras brutas. Acostumei-me a me defender de seus golpes e provocações, mas costumava me resguardar em alguns lugares, para fugir dos brutamontes. Carregava comigo papel e lápis de cor, livros e gibis, e me escondia atrás da porta, no meu próprio quarto, no vão entre a parede e o armário, no quarto de minha mãe. Mas o lugar preferido era a máquina de costura Singer, posicionada sob a janela da cozinha, para pegar o sol da tarde enquanto minha mãe costurava.
Era uma máquina com gabinete de madeira nobre, cheirando a verniz. Abria-se uma tampa, na parte superior, e uma porta, na parte da frente. A primeira, apoiava-se na segunda, formando uma mesa. A máquina em si ficava recolhida em um compartimento, de onde era erguida e posicionada para o trabalho. Era feita de ferro patinado, pintada de marrom, com o nome SINGER escrito em letras douradas, e funcionava manualmente. Abaixo dela, ficava um grande pedal, usado para colocá-la em movimento. Havia, também, fixados na porta, dois pequenos nichos, onde minha mãe guardava retroses de linhas coloridas – Drima Corrente, a melhor linha que há! – botões, agulhas, alfinetes, joaninhas, fita métrica, dedal, colchetes, sianinhas. Uma vez fechada, a máquina me levava a navegar.
Sentava-me, encolhida, no largo pedal, e balançava o corpo para um lado e outro, singrando o mar a bordo do navio de Simbad, o marujo. Meus olhos faiscavam diante dos tesouros que encontrava na travessia da África, as quinquilharias de costura se aquilatando em brilhantes e esmeraldas. Tecia redes com as linhas e fazia as joaninhas de anzóis, capturando peixes mágicos. Ouvia os passos dos meninos, que corriam e gargalhavam, entretidos com alguma brincadeira. A água escorrendo da torneira, enquanto a mãe lavava a louça, o tilintar de copos sendo colocados no escorredor. Logo eu seria descoberta.
Sentindo falta da neta, minha avó escancarava o esconderijo, fazia-me sair de lá à força, ralhando sem cessar. Eu saía rumo ao quarto, para brincar com as bonecas e contar-lhes minhas aventuras. Quando escutava o barulho ritmado da máquina a trabalhar, voltava para a cozinha, e ficava por lá, rondando a mãe, enquanto ela costurava alguma coisa. Achava bonitos seus gestos, o jeito como passava a linha pelo buraco da agulha, espremendo o olho direito para mirar melhor. A mão subindo e descendo, acompanhando o giro do volante, os pés, para cima e para baixo, para cima e para baixo, fazendo a agulha subir e descer. Às vezes, ela parava, esquecida da peça de roupa, e ficava a olhar para a rua, o vento que batia nos galhos da goiabeira, o muro cinzento que nos separava da casa vizinha. Havia cansaço e solidão em seus olhos, um fio de tristeza que me escapava então, e só fui deslindar já adulta. Também se dedicava, com afinco, a organizar os aviamentos, pondo-se surda aos gritos dos filhos.
Era de se esperar que ela fosse uma grande costureira, mas não. Amaldiçoava céus e terra quando precisava trocar um zíper. Fazia pequenos consertos, a barra de lençóis e toalhas. Achando que a costura estava torta, desmanchava e recomeçava, com resignada paciência. Minha mãe era feito Penélope, desfazendo o trabalho do dia, desfazendo-se das angústias da vida. Ela também navegava, mas não vivia aventuras. Apenas lutava contra tempestades e despedidas. A máquina de costura era esconderijo compartilhado, navio em fuga – tábua de salvação.
Que lindo!!