Mais faceiros que nervosos, Sandra e Raimundo emanavam alegria naquela tarde chuvosa. Com a pequenina filha nos braços, mamãe insistiu para que ele apressasse a ida ao cartório e, mais uma vez, lembrou enfaticamente o nome escolhido : Agnes! Com ‘esse’ no final!
Raimundo se tocou para a empreitada ainda emocionado e agora, mais nervoso ainda, afinal, tinha boa percepção da sua costumeira falta de atenção para tudo que fazia. No trajeto, esmerou-se para decorar a recomendação da patroa : Com ‘esse’ no final! O nome Agnes já estava tatuado na memória.
Logo que se conheceram, foram pela primeira vez ao cinema. Sandra estava morrendo de vontade de assistir o filme Os Goonies, de Richard Donner, muito pela recomendação de sua irmã Rejane.
Na ocasião, sem entender direito, Raimundo comprou o par de ingressos para outra sala : Agnes de Deus, de Norman Jewison. Mais uma trapalhada.
Sandra ficou aborrecida. Não só pelo estilo dramático, mas principalmente do que estava imaginando – uma aventura infantil.
Uma coisa porém a agradou imensamente: Agnes – o nome da freira noviça.
E ali, o sonho de tornar-se mãe aflorou em seu coração. Já tinha até nome, imaginando a pequenina sendo uma das primeiras na hora da chamada no colégio.
Cerca de duas décadas depois, a juventude de Agnesse era vivida intensamente.
Seguia seus estudos à noite, trabalho durante o dia e nos finais de semana divertia-se muito junto às amigas próximas.
Barzinhos com música ao vivo não faltavam. Namorados? Bah, menos ainda.
Sandra cansava de comentar nos almoços dominicais que Agnesse tinha o dedo podre para escolher seus pares : Puxou a tua tia Rejane! Só pode!
Os queridos eram dos mais sortidos mas sempre deixavam a jovem no pincel. Ou estavam com outra, ou a maltratavam – física, psicológica ou simplesmente desapareciam.
Agnesse tinha um coração de ouro, sempre otimista e sonhadora. Tinha convicção de que o parceiro certo estava a caminho.
Seus valores, carácter e princípios lhe foram transmitidos – com esmero e atenção – pelo Raimundo desde a tenra idade. E nisso, ela acreditava lá no fundo de sua alma forte e generosa.
Pouco antes de completar trinta anos, Agnesse percebe Gustavo, com amigos, na fila da pipoca. Cruzaram aquele primeiro olhar como duas ardentes flechas em direção aos corações de cada um. O filme Ammonite, de Francis Lee, precisou ser revisto em outra ocasião, pois naquela noite, no escurinho do cinema, os olhares esforçavam-se sem parar e nem perder o foco. Agradeciam em silêncio, sempre que a cena tinha um pouco mais de luz, para tentar encurtar a distância das cinco fileiras.
Sussurrou para si mesma : Ah meu coração, estamos sentindo a mesma coisa né?
Hoje, despede-se de seus colegas no trabalho, caminha feliz pelas ruas até seu ponto de encontro com Gustavo. Ao pé da escadaria, seu coração explode de emoção ao avistar o amado, que sempre lhe traz uma florzinha roubada. E a partir dali, de mãos dadas, andam ao ponto do ônibus que os levará para casa.
No caminho, conversam e dão risadas. Expressam saudade da filhota Charlotte, que está sob os cuidados da tia Rejane, quando ele a brinda com um par de guloseimas.
Gustavo não só curou seu dedo podre como também acalentou aquele valente coração que tanto sofreu e que persistiu com fé. Tu merece Agnesse.
Charlotte, personagem de Saoirse Ronan no filme Ammonite de 2020.