Entre talheres

Era como se, ajeitando os talheres na gaveta, suavemente, o pensamento fosse se organizando também.
A cada garfo, faca, um sentimento se acomodava, e o coração mais tranquilo era sentido.
O tempo paradinho ali, naquele momento nada mais importava.
Era tomada por um alívio de que tudo ficaria bem.
O mundo, as emoções e percepções, representados pelo olhar na gaveta e nos talheres.
De fato, a vida é para ser saboreada devagar. E quantos sabores já tinha se oportunizado à degustação.
Na floresta, a biodiversidade é incontável, tanto no aspecto matemático quanto de comunicar o impacto vivenciado pela grandeza que se debruça sob seus olhos apertados na tentativa do foco.
O sentimento se converte em lágrimas que invadem o sinuoso rosto, aquecido pelo sol ardente do Norte enquanto a lancha desliza sobre as Anavilhanas.
Só uma cabocla mesmo – que carrega na face as marcas profundas dos caminhos que já percorreu – talvez possa contar um pouco sobre o complexo e equilibrado ecossistema amazônico.
Ela fala da seiva pura hidratante que cura inflamações, de cicatrizantes naturais encontrados no sistema de tecido vascular das plantas; de peixes que se tornam vegetarianos durante os meses de alagamento; na seca, a fertilidade da terra em lama, restando certa a importância da preservação daquele santuário natural.
Foi uma experiência e tanto navegar pelo rio Negro, importante afluente do Rio Amazonas, em meio a
igapós, apreciando a beleza inusitada das copas das árvores imersas na floresta alagada.
Um passarinho aqui, outro ali, uma revoada, um assobiar afinado e a resposta em seguida.
Uma sintonia, tudo em preservada sintonia.
Uma sensação de pertencimento vai tomando conta de mim, fazer parte do todo.
Já não sei mais o que sou eu, o que é o restante. Mas que restante? Estou integrada.
Inebriada por tanta densidade de beleza, a voz cabloca que controlava o leme, e falava com pássaros, era o que me conectava à realidade e me mantinha ali presente.
O restante era voo.
Dos mais bonitos que já fiz.
A vida é enorme.
Fechei a gaveta, terminei de guardar a louça, integrando a mim a solidez das memórias acumuladas e
degustadas quando me permito pausar e navegar, sem medo, pelo íntimo particular mundo das emoções.


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