Gregory Harlin por Maristela Rabaiolli

Meu Breu

Maristela Rabaiolli

O defunto-autor Brás Cubas, no livro Memórias Póstumas, de Machado de Assis, faz um inventário bastante pessimista sobre sua vida. Prestes a morrer, profere a seguinte frase: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. Coincidência ou não, Machado, assim como o protagonista de seu romance, não teve filhos. O mesmo ocorreu comigo. Não os evitei, mas também não fiz grandes esforços para gestá-los. Sorte ou azar? Não sei. O futuro dirá. Ou não. Há mulheres que nascem para ser mães, outras para assumir outros papéis. Eu pertenço ao segundo grupo.

O fato de não ser mãe no sentido estrito do termo não me torna melhor nem pior do que outras mulheres. Nem menos afetiva. A profissão que escolhi me possibilita experienciar uma infinidade de sentimentos. Empatia, afeto, solidariedade são alguns deles. Meus alunos, quando descobrem que não sou mãe, tentam me consolar: Nós somos seus filhos, professora. Não deixam de ter razão, afinal, além de gostar muito deles, também me preocupo: quero saber se dormiram na rua ou no abrigo, se se alimentaram, se usaram drogas. Juntos compartilhamos alegrias, tristezas, preocupações e saberes. Dou-lhes e peço conselhos.

Num dia de março, Daniel chegou pra mim: professora, achei uma caixa com uns gatinho dentro. São tudo preto. Bem pretinho que nem eu. Foram abandonados na rua. Uns tavam doente, tinham problema nos olhos, mas um tava são. Eu trouxe ele pra cá. Tá ali, no carrinho. O tal carrinho é desses de supermercado que meu aluno utiliza para trabalhar. Enche o veículo de materiais recicláveis, vende, e dali tira seu sustento. Não tem outra fonte de renda. Ironia da vida: Daniel se compadeceu com o abandono do animalzinho e o acolheu: Eu não podia deixar ele lá sofrendo, ele me disse.

Assim que pude, fui até o carrinho. Em meio à sucata, lá estava ele, coberto com um lençol vermelho. Ao erguer o pano, os olhos mais verdes desse mundo miraram os meus. Miau! Foi amor à primeira vista. Trouxe-o para casa. Era mirradinho que só. Meu marido achou loucura, mas logo deu-lhe um banho com água morna no tanque. Bruna, minha enteada, o batizou. Meu amigo Baiard é o padrinho. Sempre pergunta pelo bichano e ficava aflito ao saber que eu ainda não havia colocado tela na sacada. Imagina se cai do sexto andar.

Breu enche a casa. Ele e o irmão, Hermeto, brincam e brigam à solta dentro do apartamento. Adora agarrar, no ar, o ratinho que é jogado para ele. Salta feito um arqueiro da primeira divisão. Sabe “falar” quando quer carinho, comida. Mesmo assim, tem personalidade forte. Se não quer alguma coisa, não há cristo que o convença. Quem tem pet sabe do que estou falando.

Coincidência ou não, Breu é tão afetuoso quanto meu aluno Daniel. Ambos renegados pela sociedade. Infelizmente, no entanto, ainda há pessoas que, influenciadas pelo conto de Poe, pensam que os gatos negros são portadores de maldição. Essas mesmas pessoas acreditam que morador de rua é escória, mas elas não têm nada a ver com isso. Eles estão nessa situação porque querem. Não se esforçaram o suficiente na vida, costumo ouvir.

Nesses tempos sombrios, a frase de Brás Cubas se encaixe perfeitamente. E ser mãe de gato preto só me trouxe júbilos.


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