Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia.
Caio Fernando Abreu
Descarilho
Durmo tarde. Levanto amassado. Engomo a roupa. Percorro longos caminhos. Desvio de bons atalhos. Misturo as estações, me perco nas filas. Embarco, por sorte. Piso na grama, de sapato. Almoço qualquer comida, engulo qualquer sapo. Recuso convite para um chopp. Declino da dança. Perco o passo. Ignoro o verso, mais ainda o parágrafo. Fujo da descontração. Trabalho dobrado. Dou tapinha nas costas. Faço minhas algumas abjetas palavras. Voto errado. Subo no muro quando a manifestação passa. Volto, errando. No sinal ignoro o palhaço. Sorrio amarelo. Avanço o vermelho. Provoco pena. Por nada, fico bicudo. Evito o abraço. Desdenho da crítica. Relevo o elogio. Madrugo sábado. Furto-me da chuva, destrato a garoa, reclamo do sol. Não registro o momento. Deleto a foto. Desobedeço. Finjo independência. Rezo pedindo uma benção egoísta. Sem ajoelhar. Desacredito. Assumo a máxima culpa. Fico em silêncio.
Não inspiro. Não exalo. Não piso na grama descalço. Não choro assistindo romances. Não rio de graça, não faço drama. Não respiro cultura. Detesto teatro. Não aplaudo. Não passeio de bicicleta. Não bebo chuva direto do céu. Não moldo bichos usando nuvens. Não conto estrelas. Não viajo. Não ouso uma calça vermelha. Raramente uso jeans. Não sou da moda. Não paro o trânsito, não arraso. Não perco segundos vendo flor que desabrocha. Não suporto pressão. Não respeito depressão. Não enfrento karaokê. Permaneço sóbrio. Não solto o verbo. Não pinto o sete. Não termino o livro. Não começo. Não escrevo crônica sobre mim. Não planto árvores, não terei filhos. Não me abro. Não canto. Não dou ouvidos para o blues que vem da janela. Não tenho vinil. Não caminho pela praia. Não sinto a areia. Não dou o passo definitivo. Não salto de mãos dadas. Não cruzo a ponte. Não mergulho no abraço. Não amo como se fosse a última vez. Não digo sim pra ela. Não aceito ele. Não quero saber. Não fico calado.
Tenho fotos não tiradas, textos engavetados e palavras não ditas. Crio letras sem sentido, músicas sem enlevo e castelos de cartas. Coleciono amigos desconhecidos, amores blasés e vexames. Vivo momentos pálidos e dias breves. Resisto, por sorte.
Primavera, verão, outono, inverno.
A cada estação, me esvaio em filas, longas filas.
E perco o bonde.
Texto produzido na Oficina Santa Sede – Módulo Mosaico, em 29/10/2019