Robert Grace por Marcia Ribeiro

Mosaico Santa Sede

PoA, 18 nov 2020.

Travessia

Marcia H de M Ribeiro

Para acender a luz do corredor que levava ao apartamento da professora de piano, precisava ficar no penúltimo degrau da escada, apoiar o corpo na parede e na pontinha do pé, inclinando-se para a direita, tocar o interruptor da luz com a pontinha do dedo médio. Tamanho esforço de equilibrista não recebia devida recompensa.

O corredor era tão comprido e a passada tão curta que no meio do caminho a luz apagava. Sempre. Invariavelmente. Nem sempre no mesmo lugar. Às vezes um pouco à frente, a depender da velocidade da corrida contra o temporizador.

A luz apagada acendia a escuridão e uma repetida pergunta silenciosa: Volto? E voltando, e usando o mesmo malabarismo para acender a luz, como conseguir resultado diferente? Seguir em frente desacompanhada despertava-lhe tanto medo quanto os filmes de terror que o irmão mais velho assistia escondido dos pais. Quais monstros estariam à sua espera naquele pedaço que não podia ver? Algumas vezes até lhe ocorria esperar, sentada no chão no lugar do corredor em que a luz apagara, até que alguém, entrando ou saindo do prédio, a acendesse. Mas tinha a aula de piano, que começava logo depois de engolir a contragosto ao menos um pedaço do pão do café da manhã, porque saco vazio não para em pé, dizia-lhe a avó. Chegar atrasada e desagradar a professora era pior que enfrentar os monstros. Tinha sempre pouco tempo para decidir, por isso seguia, devagar, tateando as paredes do corredor até a porta do apartamento um.

Durante os anos seguintes lembrava daquela travessia demasiado comprida na escuridão, como se fora imagem distorcida, criada pela pequenez. Por estas coincidências que a vida vai organizando, voltou àquele prédio para levar a filha numa festinha de aniversário. Reencontram-se, ela e o corredor de azulejos brancos em meia parede finalizado por uma fileira de azuis-cobalto. Surpreendeu-se que tudo era tal qual a imagem infantil, e estancou à porta, arrebatada pelas lembranças da escuridão. Não tardou a ser resgatada pela voz menininha impaciente: – Vamos, mãe!

Seguiram até o único interruptor velho conhecido. Suspirou aliviada por poder dispensar o degrau da escada à sua esquerda. No meio do trajeto, um pouco antes ou depois do mesmo lugar do corredor do passado, talvez porque no ritmo de outro passo infantil, apagou a luz. Titubeou e se surpreendeu com a voz interior: – Volto? … Ainda vive em mim a menina do degrau da escada, tentando alcançar o interruptor na pontinha do pé com a pontinha do dedo?

– Mãe, vamos, mãe! Apertou a mãozinha quente e atravessaram o resto do corredor, no escuro, seguindo a algazarra das crianças que vinha do apartamento um.

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