Segundo rápida pesquisa, hoje ao alcance de algumas tecladas, descubro que creditam o desenvolvimento da ampulheta ao monge francês Luipraud, no século VIII – artífice de uma das mais antigas formas de medir pequenos intervalos temporais com muita precisão. Inclusive, o termo ampulheta é bíblico e significa algo como “a passagem inevitável do tempo e a transitoriedade do homem”. No entanto, há outras areias para além dos dois bojos de vidro que também marcam a inexorável marcha dos segundos, minutos, horas, dias, anos… Gerações. Na minha família, elas estão na faixa oceânica que compreende a Praia do Barco.
Desconsiderando a Vila Morena (seria mesmo possível desconsiderá-la?), o verão de 2023 marcou uma efeméride: cinquenta anos da casa dos meus pais. Originalmente pré-fabricada – e por isso construída em pouco mais de um mês, ainda em 1972 –, ela habitou nossas infâncias. Depois, recebeu duas reformas: uma quando eu e minhas irmãs já éramos jovens e outra em nossa madureza, atualizando a casa para a terceira geração. Em cinco décadas, muitos baldinhos, pás, esteiras, chapéus, planondas, boias, caniços, samburás, tarrafas, guarda-sóis, morey-boogies, havaianas, toalhas e protetores solares compuseram o tempo ao carregar consigo a areia da praia pra lá e pra cá.
Pois coube ao ano do cinquentenário dar uma prova de gratidão à resistência afetiva da dona Isolde em manter a casa: a recém chegada Agatha foi premiada com a ventura de ter em sua existência a oportunidade de trilhar os passos do bisavô e da bisavó, do avô e da avó, do pai, da mãe e dos tios, das primas e dos irmãos nas quadras que separam a casa do oceano. E descobrir a textura da areia com suas mãozinhas gorduchas de bebê na ampulheta da família. Compor lembranças e ouvir histórias pretéritas de um tempo tão estranho que parecerá outro milênio. Ops, parecerá, não: será de outro milênio.
Para mim, uma emoção renovada.
Precisará passar muitos anos para que a caçula compreenda minimamente o que aconteceu com o velho pai no ano do cinquentenário da casa da praia. Como quem vira outra vez a ampulheta, entrarão em marcha protetores solares, toalhas, havaianas, morey-boogies, guarda-sóis, tarrafas, samburás, caniços, boias, planondas, chapéus, esteiras, pás e baldinhos… E meus olhos redescobrindo mãos descobrindo na textura da areia a inevitável, esplendorosa e avassaladora passagem do tempo.