6 Flávio Wild

A maldição

Desde que se entendia por gente, Luigi sonhava em ser navegador. Filho único, morava longe do litoral e, quando não estava no quintal, à toa, imaginando ondas e maremotos, se enclausurava no próprio quarto, cara enfiada em mapas velhos, traçando rotas marítimas como se já fosse um experiente capitão. Mas Luigi cresceu um pouco, e o sonho mudou, também um pouco: queria então ser oceanógrafo. Não destes comuns, que estudam o mar e coisa e tal. Queria ser um visionário das águas, o maior documentarista da vida aquática. Mais, até: queria ser o Indiana Jones dos mares, o 007 que cumpria missões nas profundezas oceânicas. Queria, enfim, ser Jacques Cousteau.

Mas havia um problema: a maldição da família. Os Spugnatti, sabe-se lá por que, desde tempos imemoriais, não conseguiam lidar muito bem com… a água. Pois é, e Luigi, moleque ainda, não sabia disso. Até que um dia a mãe, preocupada e esperando dissuadi-lo, resolveu contar tudo, detalhando as tantas evidências, líquidas e certas, que aconteceram na história do seu “clã”.

“Seu avô, Giuseppe Spugnatti, morreu engasgado com água”. Ao questionar a mãe se com água do mar ou da piscina, ela completou: “Não, da torneira. Quem morreu na piscina foi seu bisavó. Pulou do trampolim e ficou com a cabeça presa na boia de plástico”. A lista era longa. O pai, distante, se foi de vez ao beber água de chuva, contaminada. A “trisa” Ludovica escorregou numa poça na calçada e, no hospital, acabou se engasgando com o chá que serviram lá. O caso mais conhecido, porém, era do Tio Eustáquio, o bombeiro. Durante um pequeno incêndio, enquanto tentava apagar as chamas com um balde d’água, outro colega, sem querer, o atingiu com a mangueira. Tio Eustáquio caiu de costas, com a cabeça mergulhada no balde e, antes que alguém percebesse, já era tarde. Virou notícia: o único caso registrado de um bombeiro morto afogado em serviço, e num balde. E tinha mais, muito mais.

Mas Luigi não se afogou em mágoas, e seguiu com o plano de ser o próximo Costeau – tinha até projeto (desenho) do seu próprio Aqualung. Já se via a bordo do Calypso II cruzando o Mediterrâneo e o Vermelho, fazendo registros que seriam apresentados na série documental, em TV aberta e streaming, “As Aventuras Submarinas de Luigi Spugnatti”. E nem dez anos ele tinha, imaginem…

E sendo ele assim, um guri, Luigi gostava de visitar o parque da cidade, perto de casa. Dia desses ele foi e, como de costume, seguiu direto para o Aquarium. Copo de refri na mão, ele contemplava o falso fundo do mar através do vidro gigante e se via lá dentro, de escafandro e celular, fazendo selfie. Por um longo período, observou os peixes coloridos, a água não necessariamente limpa, os adereços que simulavam o cenário subaquático. Um pequeno tubarão galha-branca-de-recife se aproximou. “Triaenodon obesus, Luigi sussurra, cutucando o vidro com o dedo. Como não surtiu efeito, pegou uma pedra de gelo do copo e bateu, tentando produzir um som mais atrativo. O animal esguio se movimentou em sua direção. Os olhinhos brilhantes de Luigi somente se desviaram dele quando viu a rachadura ínfima que, num estalo, se tornou evidente. Um estilhaço, seguido do primeiro jato, antecipou a explosão. E assim, num falso maremoto, submergiu de vez a linhagem dos Spugnatti.



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