Faz de conta que a luz é sua

“Eu não sou louco. É só a minha realidade que é diferente da sua”
Lewis Carroll – Alice no País das Maravilhas

Do alto do farol, onde mora, ele contempla além do lago, seu olhar só vê beleza, a cidade vive, pulsa em oportunidade e acolhe de braços abertos, com seus edifícios benfazejos e seus faróis em movimento. Grato, ele se mantém fiel à própria tarefa: ligar e desligar o feixe de luz branca, sempre, todo dia. Um navio passa flutuando, com o lume a seu dispor. Ele acena…

É tudo perfeito no farol onde ele mora, principalmente a luz branca, o feixe que ilumina seus impecáveis dias, compartilhados na rede social lotada de amigos, de verdade, de fé, que sempre aparecem no farol, e bebem, comem e riem à toa. Nas manhãs de dias úteis, feliz de carro novo, ele dirige até a empresa onde faz o que gosta, tem carteira e bom salário, e onde a chefia é dez e toma café com o chão de fábrica. De volta, cruza o jardim que vai se colorindo ao contato de sua mão e, na sala acolhedora do farol, sorri inebriado com as notícias na tevê, todas boas e insuspeitas, e da luz que dela sai, um feixe, que inunda…

E ele brinca, liga e desliga a luz branca para impressionar a bela moça que veio de visita, no farol onde ele mora. Trocam seduções, namoram a cidade, ao longe e tão perto, e saboreiam delícias compradas com o bom salário que ganha fazendo o que gosta. Do alto do farol planejam compromisso, filhos, ao menos um casal, que vai brincar no jardim e passear na prainha de areia dourada enquanto os barcos passam, acenando, flutuando em direção à luz que ele liga, desliga, comanda, que pisca tremeluzente, e desperta num clarão.

Sol na cara, corpo dolorido, pela janela fraturada do barraco onde mora, ele vê o farol do clube, sempre, todo dia, listrado de azul e branco, bem longe. Mais tarde, após deixar o centro da cidade onde procura emprego e chora à toa, vai passar lá na praia de areia suja, procurar papelão e lata, quem sabe um resto de comida. Talvez veja uma luz, branca, mas ela sai de placas e células fotovoltaicas e, na real, ele não pode controlar.

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